segunda-feira, 17 de maio de 2010

Tata Marques

Eu estava na oitava série e era magra, mas me achava gorda. Era mais alta que todas as colegas de sala e pensava que isto era uma coisa muito ruim, provavelmente porque os meninos crescem depois das meninas e, naquela época, eles eram ainda muito menores que eu e, talvez por isto, sentissem maior atração pelas baixinhas. Acho que foi naquele ano que eu decidi que só me olharia no espelho quando fosse estritamente necessário, ou seja, para espremer cravos, para prender o rabo de cavalo e para escovar os dentes.

No início de 1997, a pessoa com quem eu mais conversava era comigo. Meu passatempo, em casa, era tocar violão e ouvir música de todo tipo. O Luís me apresentou a Marisa Monte, numa reunião na casa dele. Escutei ‘De Mais Ninguém’ no meio da balburdia, com o ouvido grudado na caixa. Quando a música acabou, nem dei tchau. Fui embora e passei o final de semana tentando tocar aqueles baixos, em seis cordas; Na escola, meus passatempos eram ler Dostoievski durante as aulas de ciências e desenhar os professores em trajes engraçados nas demais: o Flávio, por exemplo, que era gordinho e dava aula de geografia, fiz virar bailarina. O legal disso era que os desenhos rodavam de mão em mão - sem assinatura, claro - e todo mundo reconhecia que era o professor que dançava balé com as banhas saltando por entre o top e o saiote cor de rosa.

Na hora do recreio, meu lugar preferido era o banco que ficava debaixo da sirene. Eu me sentava sozinha e ali permanecia até o fim, mesmo que grupinhos ocupassem o resto do espaço do assento e sem uma palavra direta me pressionassem a retirada. Eu era firme. Quando acontecia de eu chegar tarde e o espaço do banco já estar todo tomado, eu me encostava à parede ao lado e ficava estanque, sozinha no meio dos outros, sem dizer uma palavra.

Os mais velhos da escola sempre tiveram autoridade para expulsar os mais novos dos lugares que escolhiam para si. Não estava escrito, mas era lei. E, depois de algumas semanas de aula, naquele ano, a turminha do terceiro ano escolheu o meu banco. Passaram a chegar em bando, carregando merendas industrializadas, pacotes de guloseimas, gargalhadas, assuntos da noite passada, e quase me engoliam, mas eu não saía. Foi assim até que, quando eles deram por si, eu ainda estava ali todos os dias.

O Sebastião era desse grupinho do terceiro ano. Ele tinha cabelos claros e cacheados como os do Pequeno Príncipe. E também tinha olhos azuis e parecia um tipo de líder, porque todos falavam alto, menos ele. Quando o Sebastião abria a boca, a euforia dos outros diminuía para dar ouvidos, e eu achava aquilo muito importante. Ele era bem mais alto que eu, e era educado. E foi o Sebastião quem, do grupo dos mais velhos, primeiro conversou comigo. Ele comia biscoito recheado de chocolate, e estava sentado ao meu lado, tão apertado que o braço dele, sem querer, acotovelou o meu. Então, ele pediu desculpas e perguntou meu nome. Eu respondi com a voz baixinha que eu tinha na época: Renata. Mas ele perguntou muito calmo outra vez, por não ter entendido ou ouvido, e eu repeti gritando como faço hoje: Renata! E, por obra do acaso, ou porque todos se calavam para ouvir Sebastião, aconteceu de ser num daqueles momentos em que o mundo pára pra respirar e só a gente é que fala e faz barulho. E, desde aquele momento, eu fiquei apresentada aos mais velhos todos de uma vez. E ele me ofereceu um biscoito. Eu aceitei, mas não abri pra tirar o recheio primeiro, como era de meu costume, porque fiquei com muita, mas muita, mas muita vergonha mesmo de ter alergia a chocolate. Comi e não fez mal.

Em 1997, foi este grupinho que me fez companhia na hora do recreio, até o fim do ano. Embora na maior parte do tempo eu olhasse para o nada e permanecesse calada, estávamos ali sentados no banco debaixo da sirene. E eles me cercavam e, de vez em quando, até pediam minha opinião nos assuntos deles.

Em 1998, essa turma se formou, saiu da escola e eu nunca mais vi aquelas pessoas. Era um grupo de muitos rapazes maiores que eu, mas, basicamente, lembro o nome do Sebastião e de uma menina só, que andava com eles, além de mim. E o nome dela era Alexandra. Eu sentia muito ciúme da Alexandra, porque pensava que ela fosse linda em maior grau que eu (que praticamente não me olhava no espelho desde o ano anterior) e porque demorei muito tempo para saber que do Sebastião ela era só prima.

Em 1997, eu nunca tinha beijado ainda, e sonhava que seria o Sebastião, meu primeiro beijo. Não foi. E eu não contei do meu sonho a ninguém, mas acho que se eu tivesse contado o Sebastião me beijava. Depois disso ainda fiquei anos esperando a hora de beijar, diga-se de passagem. E eu tinha uma amiga, da outra escola que eu freqüentei em 1996, a Suzana, que sempre que me encontrava, perguntava: e aí? Ainda tem a boca virgem?

Aos quatorze anos, minhas preocupações eram o violão, uma banda de rock que eu começava a formar com uns meninos que pareciam bonzinhos e só por isso minha mãe deixou, meus desenhos e meus ideais de mudar o mundo em mim.

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Tata Marques

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