terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Laura Assis

Em 1997, eu estava na sexta série que, até onde me lembro, é uma série meio sem graça. Não é interessante como na quinta série, quando você se sente meio adulto por ter saído do ensino fundamental e começa a estudar coisas realmente importantes, como a civilização Egípcia, Inca, Asteca, Maia. Aliás, nem todo mundo sabe, mas foram os maias que inventaram o nada, quer dizer, o zero. E é claro que a gente precisa respeitar e estudar uma civilização que alcança esse nível de abstração. Mas enfim, na sexta série não tinha Maia, abstração e nem nada que conseguisse ter meu interesse por mais de dez minutos.

Entretanto, eu me lembro de ter tido na sexta série uma professora de matemática muito jovem, alegre e simpática. No primeiro dia de aula, todos a adoraram e decidiram que ela era a melhor professora do mundo. Um mês depois, uma turma surpreendentemente em silêncio assistia a essa mesma professora esconder o rosto entre as mãos e chorar durante aproximadamente 15 minutos. Nós sabíamos que éramos indisciplinados e que os professores costumavam se chatear um pouco com nosso comportamento, mas fazer uma professora chorar era novidade e o pessoal até fez umas piadinhas depois, mas no fundo todo mundo ficou se sentindo meio culpado. Na aula seguinte, umas meninas levaram um buquê de flores para a tal professora, o que foi meio ridículo. É muito fácil ser ridículo aos 13 anos.

1997 foi o ano que meus amigos aderiram à moda de promover/frequentar Hi-Fi’s (1) e sempre que recebia um convite eu imediatamente era sugada para aquele lugar incômodo dos dilemas. Ir ou não ir? A dinâmica das festinhas era sempre a mesma, tudo girava em torno de tomar coca-cola e comer coxinhas, ouvir músicas horríveis – “And I say: Hey! yeah yeaaah, hey yeah yeah. I said hey, what's going on?” e “Where do you go ô ô ê ô I wanna know ô ô ê ô” eram hits e, se não me engano, esse foi também o fatídico ano de “Macarena” – e rir dos pseudocasaizinhos que iam se formando nos cantos mais escuros do salão de festas do prédio do anfitrião da vez. Eu achava um pouco chato. Às vezes alguém sugeria brincar de verdade ou consequência. Não dava muito certo, porque os meninos faziam perguntas nojentas que ninguém queria responder e as meninas nunca aceitavam pagar as prendas.
 
Sem contar que era extremamente injusta aquela regra universal de “menina leva salgado e menino leva refrigerante”, pois, uma vez que nasci mulher e nunca troquei e nem pretendo trocar de sexo, estaria eu condenada a levar salgado por toda a eternidade dos Hi-Fi’s? Se fosse hoje em dia, eu faria uma revolução naquele sistema patriarcal, apareceria na festa com uma garrafa de Guaraná Americana e despejaria um discurso feminista interminável em quem reclamasse, mas na época só implorava uns trocados para minha mãe e, se ela concordasse em me dar, corria na padaria para comprar umas empadinhas.

Ainda assim, acredito que ao longo de 1997 eu tenha frequentado aproximadamente 70% dos Hi-fi’s do pessoal da minha sala. Todos foram exatamente iguais, com exceção de um que terminou em uma sessão de pique-três-cola-americano, modalidade complicadíssima de pique que, até onde sei, só existe aqui em Juiz de Fora (2).

1997 foi também o ano em que entrei para o grupo de teatro da escola. Fiquei por lá seis anos, mesmo sem nunca ter tido a intenção/ilusão de ser atriz. Geralmente eu era a iluminadora, o que consistia em apagar e acender a luz no momento certo (no início e no final da peça, respectivamente).

O pessoal do teatro era mais descolado e não frequentava Hi-Fi’s, o que rolava às vezes eram umas voltas pela rua depois dos ensaios, que terminavam mais ou menos umas oito da noite. Nesse contexto, era frequente a prática de atividades recreativas como: descer o caminho da escola até o centro gritando desesperadamente por socorro, simulando verbalmente assaltos, estupros e até mesmo tentativas de homicídio. Acho que era uma espécie de laboratório extremo de atuação. Era difícil chegar em casa e me comportar como uma pessoa normal depois de viver tantos dramas fictícios.

As pessoas que frequentavam o grupo de teatro tinham idades variadas, entre 13 e 17 anos, mas não havia nenhuma divisão, todos eram relativamente próximos e, no geral, ninguém era dado a picuinhas, implicâncias e nem nada daquilo a que hoje chamamos: bullying (3). Mas tinha um cara um pouco mais velho que eu, talvez uns 15 anos, que simplesmente me odiava e eu não fazia/faço ideia do motivo. Aparentemente, ele se sentia extremamente afrontado pela minha existência e não fazia questão de esconder isso, chegando a sair de um lugar quando eu chegava e perguntando frequentemente aos meus amigos: “por que você anda com essa menina?”. No final do ano teve um amigo oculto e ele avisou que se me tirasse ia me dar um rato morto de presente. E eu lembro que pensei “onde ele vai arranjar um rato morto? não seria mais fácil só trocar o papelzinho com alguém?” (4).

Se eu acreditasse em reencarnação, diria que na vida passada eu torturei e matei toda a família dele, algo assim. Um amigo em comum uma vez me falou, meio que brincando e meio que se desculpando “não liga não, ele é doido e não vai com a sua cara... acho que ele só te acha... estranha.”.

Ser objeto da raiva inexplicável de alguém me incomodava menos naquela época do que incomodaria hoje. Ainda assim, até pensei em sair grupo de teatro para não ter mais que encontrá-lo com tanta frequência, mas, felizmente, ele era burro e repetiu o ano, o que fez com que os pais dele cortassem todas as atividades extracurriculares. Eu, que na época acreditava em deus, encarei como justiça divina.

Aliás, semana passada eu me sentei num bar no centro da cidade e esse cara estava na mesa ao lado. Tinha pelo menos uns 15 anos que eu não o via, mas reconheci imediatamente. Não tive a menor vontade de cumprimentá-lo.

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(1) Para a maioria das pessoas, Hi-Fi é aquele drink de fanta laranja e vodka ou a abreviação de "High Fidelity", mas aqui em Juiz de Fora e adjacências é como chamamos aquelas festinhas pré-adolescentes que em outros lugares têm o nome de “bailinho”.

(2) Procurei no Google, com e sem hífen, e as duas únicas ocorrências são: a página de um hotel fazenda aqui da cidade descrevendo as atividades previstas para as crianças na colônia de férias; um juiz-forano chamado Thiaguin_JF falando de sua infância em seu fotolog.

(3) No geral, a escola e a minha sala, mais especificamente, eram o reino do bullying. Imagino que todos tenham saído dali extremamente traumatizados, era meio pesado viver naquele ambiente hostil. Alguém deveria estudar esse caso.

(4) Felizmente ele não me tirou no amigo oculto e eu não ganhei um rato morto e sim um belo porta-retrato pintado à mão. Tenho guardado até hoje. 

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