terça-feira, 22 de outubro de 2013

Ana Martins Marques

Le vent se lève!... il faut tenter de vivre

Em 1997 eu tinha acabado de fazer 19 anos e estava morando pela primeira vez fora do Brasil. Seria também a única em muito tempo e talvez para sempre, mas isso, então, eu não tinha como saber. Estava morando fora do Brasil e tinha o coração em dois lugares, o que é mais ou menos como amar duas pessoas. Eu me perguntava todos os dias, como uma personagem do Breve carta para um longo adeus, do Handke, que em 1997 eu não tinha lido ainda: Este é o segundo dia que passo na América. Será que já mudei? Eu não estava na América e ainda não tinha lido o Handke mas me perguntava todos os dias: será que já mudei? Anotação num caderno da época: Amanhã serei ainda esta que quase já não sou? Estava muito sozinha e escrevia muito. Escrevia, por exemplo, cartas, já que era 1997 e as cartas ainda existiam, embora estivessem quase deixando de existir, mais ou menos como aquela que eu quase já não era. Escrevia também uns quase poemas, notas sobre nada, citações que colhia nos livros naquela língua que eu quase sabia embora na verdade não soubesse não. Por exemplo: Où est le Christophe Colomb à qui l'on devra l'oubli d'un continent? E embaixo: Apollinaire. Ia enchendo cadernos pra esquecer um continente. A escrita era o meu Colombo? O continente, acho, era eu. Ou então eu só estava mesmo me sentindo muito sozinha.

Era 1997 e eu era babá numa família com duas crianças. Acho que os pais me aceitaram, apesar da minha falta absoluta de jeito com o mundo, por causa do afeto que eu tinha pelos meninos e que eles pareciam ter por mim. Ou então eles só estavam mesmo sem alternativas. Eu passava os dias desenhando e brincando na pracinha e conversando conversas de criança. Nos fins de semana pegava o ônibus para algum lugar. Ia muito a Sète para ver o cemitério marinho. Era perto, mas não muito eficaz contra a melancolia. Lia em bancos de praça ou na praia ou de pé nas livrarias. Foi, só agora eu penso, quando morei mais perto do mar. No meu primeiro dia com eles, era janeiro de 1997, nós fomos ao circo. Era um circo muito pequeno e simples, o que é sempre triste. Quase no fim a pequena equilibrista caiu da corda bamba e aquilo se parecia com o meu medo. À noite eu ninava os meninos com canções do Chico Buarque. Ninava também talvez um pouco a menina que eu quase já não era.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Ana Lucia Silva

o mundo quase acabou em 1997

Tem um momento na vida q vc se sente na crista da onda. Parece que anda dando tudo certo. Vc faz tudo o q se espera e recebe os aplausos da torcida. Faz nem sabe bem porque, faz porque todo mundo faz.

Eu lembro que cantava “Stand by Me” do Oásis enqto dirigia meu carro “Nobody knows Yeah/ Nobody knows the way it's gonna be” a caminho de ir buscar a chave do ap novo.

Conquista de tantos trampos, o lance era qualidade e tudo carimbado com ISO 9000, 9001, 14000. Controlar toda a cadeia produtiva. A engrenagem saia do material para o imaterial. O capital se deslocava para o tal dos recursos humanos para treinar o corpo a exaustão e quanto mais dócil mais Total Control Quality

Mas daí o alerta: bip...bip...bip...eu tinha vindo com defeito. Qualidade rejeitada na esteira da produção. Deu tempo ainda do médico dizer: Se vc chorar, eu choro também. Eu percebi que o negócio tava preto. Rim é órgão vital, porra!

No máximo dava pra traçar um Diagrama de Pareto e torcer pra poder abrir os olhos depois da mesa de cirurgia.

Mas não era hora desse mundo pra mim se acabar. Só se acabou aquele mundo certificado. E deixei solto, deixei correr solto: “Yeah - God only knows the way it's gonna be”.


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Ana Lucia Silva

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Bruna Beber

1997 foi um ano químico. Me dediquei sobretudo à produção de perfumes. Leila Percas e Ganhas, cujo batismo se efetivou depois da primeira aula sobre percas e ganhas de elétrons (sic), decidiu nos iniciar à gincana das fragrâncias.

Íamos apresentar um trabalho sobre perfumes pra ganhar pontos extras sem fazermos ideia de como fazer um perfume. Leila P&G, com seu impulso de cama elástica parada, desafiou "Ué, pesquisem. Lá no Mercadão tem tudo".

As instruções eram objetivas: Mercadão de Madureira/ loja de essências/ essências/ vidrinhos/ tampas. Depois, uma loja de presentes: saquinhos/ lacinhos/ caixinhas. Por fim, uma papelaria: etiquetas/ um toner de impressora/ cola.
Em uma tarde na casa da Iracema, a única pessoa do mundo que conseguiu usar os cds de instalação da AOL pra alguma coisa além de móbile de teto, e também a única que podia usar a internet antes da meia-noite livremente, achamos as respostas principais no site Cadê? e alguns detalhes no AltaVista.

Naquela época isso significava nada. Procuramos por alguma sala de bate-papo de farmacêuticos no Zip, nada. Enciclopédias, pararam em botânica. Ninguém mais tinha um Pequeno Químico inteiro e o Telecurso 2000 há três anos só ensinava MMC e MDC.

Em trinta minutos no Mercadão de Madureira, o vendedor nos ensinou não só a fazer perfumes, como xampu e creme rinse, o futuro condicionador. Minha função decidida pelo grupo era simples: fazer as misturas. Saí da loja confiante de que perfumaria a escola, o bairro e o meu avô, resistente ao elemento água.

Comecei com alfazema, um cheiro clássico e fresco, a alegria das professoras. Depois copiei O Boticário: Quasar, Dimitri, Tati. Por intermédio e crítica de uma amiga me aprofundei copiando a Calvin Klein – CK One e CK Be - visando atingir o público adolescente.

Mas foi com versões Avon que tive resultados mais satisfatórios. O perfume Toque de Amor é minha lembrança de fragância mais remota. É também minha lembrança mais remota de veneno. Como uma fada, por onde passava, vovô deixava seu inconfundível cheiro misto de roupa mal lavada com falta de banho: toque de amor.

O dia da apresentação se aproximava e eu tentava convencer o grupo de que devíamos mostrar o que nós mesmos havíamos desenvolvido. No caso, eu, sem oportunidade de escolha, em nome de todos, havia passado maravilhosos momentos transformando meu fracasso em copiar o sucesso alheio em sumo êxito pessoal. Criei minha própria coleção.

Cenário Beleza: folhas de mangueira com desodorante Musk. Até o Caroço: uma imersão de caroços de ameixas pretas comidas com incenso esfarelado de sândalo. Cajuliana: folhas de cajueiro socadas e descansadas por três dias dentro de um Vinólia rosa.

Tiramos zero. 
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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Dimitri BR

hum ano partido

parte I

1997 me partiu ao meio. metade cá no Rio, metade lá em São Paulo. no Rio, eu; em São Paulo, Lucila. e daí ônibus, carro, até na boleia do caminhão do pai do Cláudio eu fui. em São Paulo eu era clandestino: Lucila era menor, transar na casa dos pais não podia – e daí casa de amigos, banheiro, escada de prédio.

em 1997 larguei a UFRJ. fiz teatro pela última vez e tinha agora a primeira banda que só tocava músicas originais – minhas e do Achilles. mas o amor me partia e era difícil deixar o mar.

me inscrevi no vestibular da USP. pra Lingüística – que em 1997 tinha trema. (juntar línguas e letras com Lucila.) não avisei meus pais da mudança iminente: clandestino agora também no Rio. só que prima Carol também prestou USP; saem os resultados da primeira fase, minha mãe liga pra mãe dela: “como foi Carol?” “Carol foi mais ou menos”, responde a mãe-de-lá, “mas Dimitri foi muito bem!”

estava revelado meu plano de fuga. meu plano do que era o oposto de uma fuga. em 1997 fiz vestibular pra Lingüística, com trema. na USP – na U de SP. passei. e fui.

mas aí já era 1998.


parte II

1997 passei em trânsito: boleia de caminhão, carro, ônibus. 
num desses - Ubatuba-Rio - com Hofty:

[embarque] 
“não vou poder falar por um tempo, estou compondo uma música.” 
“beleza.”

[escala em Parati] 
“terminei a música, quer ouvir?” 
“deixa eu pegar o bongô.”

mas aí já era 2013.


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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Victor Heringer

PERDER OS DENTES DA FRENTE EM DOIS ATOS

PRIMEIRO

B.: Bom dia.
V.: Acordei atento. Sabe atento?
B.: Sei atento. Você olha para fotos de crianças na revista de domingo e as vê adultas, depois velhas, depois vê os filhos, os netos e todas as gerações de filhos e netos.
V.: Isso.
B.: Fuma que passa.

B.: Agora você está deprimido?
V.: Agora sim. É o cigarro.
B.: Aqui, come esta maçã. Trouxe umas fotos suas. Você criança.
V.: Não vejo nada.
B.: Espera um pouco.
(Pausa)
B.: Está lembrado?
V.: Não.
B.: Olha para a foto.
V.: Não.

B.: "3 de abril de 1997".
V.: Que tem?
B.: O dia da foto. Escrito no verso. Está lembrado?
V.: Minha boca sangrando.
B.: Sua boca sangrando, o que mais?
V.: Meu irmão socou minha boca.
B.: Os dois dentes da frente caíram à força.
V.: Nem estavam moles.
B.: Um menino tardio. Come esta maçã.
(Pausa)
V.: Um garoto tardio.
B.: O que mais?
V.: Jogamos futebol no quintal. Isso não aparece na foto.
B.: As traves dos gols eram quatro árvores. Duas suas, duas do seu irmão.
V.: As árvores dele não cresceram tanto. Pouco sol.
B.: O soco.
V.: O soco foi antes da foto.
B.: As árvores ainda estão lá?
V.: Lá onde?

SEGUNDO

V.: Tinha um canário.
B.: Baltazar, Belchior. Um dos três reis magos.
V.: O gato comeu o canário.
B.: Rarrarrá o gato comeu o canário?
V.: Comeu o canário. Um gato que não era nosso.
B.: Abaixo a propriedade.
V.: Abaixo.
B.: Você já está bêbado? Como era o nome do terceiro rei mago?
V.: Já. Aí fui pintar, eu era pintor, e derrubei tinta no chão. Tinta preta. No chão do quintal, a parte de cimento do chão do quintal. Ficou igual o Elvis Presley.
B.: Detesto o Elvis Presley.
V.: Todo mundo detesta. Está lá até o hoje o Elvis. Com topete.
B.: Lá onde?
V.: Rarrá.
B.: Quer ver outra foto?
V.: Você consegue ver os meus filhos, meus tataranetos?
B.: Sua foto do passaporte. 1997. Para onde foi?
V.: Não lembro.
B.: Você já tinha medo de matar alguém?
V.: Já.
B.: Já quebrou o braço?
V.: Nunca quebrei nenhum osso. Já lia Dostoievski.
B.: Mentira.
V.: Mentira.
B.: Animal?
V.: Antílope.
B.: Gato não?

V.: Não é insuportável?
B.: É.
(Pausa)
V.: Lembrar.
B.: É.
V.: Não me lembro de muita coisa.
B.: Cor favorita?
V.: Vermelho.
B.: E o backstreetboy favorito?
V.: O bonzinho.
B.: Rarrá.

V.: E o Vasco?
B.: Ah, pelo amor de Deus.
V.: Deus não?
B.: Nem você. Nem você?
V.: Deus claríssimo que nanão.
B.: Um livro?
V.: Dostoievski.
B.: Gosta de alguma menina da sua sala?
V.: Claro que não, para com isso.
B.: Gosta sim.
V.: Gosto não.
B.: Gosta si-im.
V.: Quer perder os dentes?
(Pausa)
B.: Por favor, come esta maçã.


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Victor Heringer

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Luca Argel

Você sabe o que é Halle-Bopp?

Em 1997 também ninguém sabia. Nunca ninguém tinha visto um (apesar do nome ter uma certa cara de anos 50). Se fosse um estilo de música, eu não escutava. Em 1997 eu abria o encarte de Gol de Quem?, pulava a regravação da Volta do Boêmio, que achava chatíssima, e me punha a decorar a letra de Mamãe Ama É Meu Revólver. Tinha o quê? Nove? Oito anos? Achava que os roteiristas de Toy Story tinham me roubado a idéia.

Já tivesse eu notícia de Halle-Bopp, talvez fosse mais fácil encontrar um nome melhor pro meu time de futebol de botão, que acabei por batizar "Os Dragões". O nome até me parecia arrogante, mas achava-me no privilégio de escolhê-lo porque tinham me dito que era Dragão o meu signo no horóscopo chinês. Foi nessa mesma ocasião que senti pela primeira vez que o mundo podia ser injusto também a meu favor. Foi depois de descobrir que ao invés de Dragão, eu poderia ter nascido Porco, fosse 5 anos mais velho, ou até Rato, fosse 6 mais novo.

Em 1997 meu irmão tinha 3 anos - isto é, Galo (menos mal). Um dia fomos de carro deixar alguém, ou buscar alguém, não me lembro, no aeroporto. E esse alguém, de quem também não me lembro, me deu um bóton da capanha Rio 2004 (para sede dos jogos olímpicos). E 2004, eu pensava olhando pro bóton, era o cúmulo do futuro. Guardei o bóton - e ainda o tinha quando chegou 2004. Até lá já havia o Halle-Bopp, mas olhar o bóton era uma decepção, porque não me fazia sentir nem um pouco no futuro.

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