segunda-feira, 17 de maio de 2010

Eduardo Sinkevisque

MEMO 1997

Júlia, este é um poema em prosa, bilhete para você. Encontrei, ontem, na minha caixa postal, a surpreendente proposta de fazer memória de 1997. Topei de imediato. Agora, faço.

Antes uma observação:

ao andar por ruas de Santana, onde moro, vi, no chão um pequeno envelope cor-de-rosa, escrito em branco: um presente – Casa de Menina – para você. No verso do envelopinho um selo que diz: agora com autoclave.



Como Santana é bairro de São Paulo com muitos moradores vindos de Portugal, ou de descendentes de portugueses, e autoclave me lembrou autocarro, palavras muito lusitanas, pensei: o presente é português.

O envelopinho deve ter sido de neta de português. Não importa.

Importa que minha memória de 1997 tem a ver com Portugal e Portugal é presente para você.

A relação de interlocução assim se constitui: Portugal para mim, que converso com você, em memória. Portugal para você, que conversa comigo, no presente.

Então, meu texto é o envelopinho para você. É minha autoclave.

Terminada a observação, a memória.

Em 1997, tinha menos títulos, menos compromissos, mais alunos. Tinha um casamento falido; meu partido era o coração partido. Fazia mestrado. Era inocente, impertinente, engraçado. Ah! isso sempre fui. Creio continuar a ser.

Em 1997, viajei para Portugal, com bolsa de estudos. Uma outra viagem, depois, já nos anos 2001, se sobrepõe a essa, tudo que vivi depois se sobrepõe as duas viagens que fiz a Portugal, tudo que vivo agora se sobrepõe ao passado, como uma massa densa de uma argila de devir.

Suo por estar aqui. Suei para chegar aqui. Seco ao olhar para 1997.



Em 1997, disse para a mulher com que estava casado:

acabou!

Ela não acreditou, mas não cantou (nem foi para) Atrás da Porta.

No dia seguinte, pediu confirmação da frase. Não só confirmei, como construí um parágrafo inteiro coerente e coeso com a separação.

Vinícius fez o Soneto da Separação. Fiz um parágrafo.

1997, foi uma longa prosa: mares de Portugal, de Espanha. Foi ano em que passei a virada do ano em Sevilha. Lá encomendei e comprei, mas não paguei, meu ex-libris.



Em Madrid, aos 24/12/97, invadi uma Missa do Galo (nada Machado) ao lado da índia de quem me separava. Foi uma pândega gentil frente a europeus. Uma piada em meio à crise conjugal.

A viagem foi um intervalo, nem por isso sem briga, na separação.

Em 1997, cruzei o Atlântico, mudei de hemisfério, sempre sendo paulista caipira. Comecei a deixar de ser sério, sem nunca deixar de ser grave, mas leve.

Em 1997, sagitário regeu minha vida. Antes leão e escorpião, que não me deixam mentir.


Ps.: Júlia, querida, anexo o ex-libris e o envelopinho digitalizados. As imagens atestam que, embora ficção, tudo que disse é verdade. Com meus melhores beijos de amizade,

Eduardo Sinkevisque.

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