sábado, 18 de julho de 2015

Juliana Bratfisch


Meu último ano com ele



1997 foi um ano longo, um ano muito feliz que acaba triste, inflado pelos oito dias excessivos de janeiro do ano seguinte que ainda compõem meu 1997. Às primeiras paixões, às festinhas de aniversário dos amigos, às tardes brincando na rua ou no quintal, às coreografias de balé, aos campeonatos de natação, às viagens de férias com meus pais para a praia ou para o interior de São Paulo, à escolha entre um caderno universitário ou um fichário para acompanhar a diversidade de disciplinas da quinta série, à primeira menstruação, acrescento a primeira grande perda de minha vida: meu avô Fred morre no dia 8 de janeiro de 1998 e retrospectivamente vejo 1997 como o último ano com ele. Oito dias esperando que ele melhorasse para poder ir visitá-lo no hospital. Oito dias depois, acordada, mas fingindo dormir ainda deitada na cama, ouvindo meu pai chorar no telefone.

– Rô, por que as pessoas vão para o céu?
– Acho que é para que as pessoas novas possam vir morar na terra.
– Não queria nunca ter matado alguém pra ter nascido!
– Ju? Eu não quero que você morra nunca, nunca!
– Nem eu quero que você morra, Rô.

Foi no Carnaval desse ano que fomos todos juntos para Guariba, Jaboticabal, Araraquara, Matão, Jaú, todas as cidades da infância de meu avô, todas as cidades que naquela época moravam os irmãos, primos e tios do meu avô. Meu pai dirigia uma Kombi vermelha e branca: ele e meu avô na frente, eu, minha mãe e o meu tio no banco traseiro. Talvez tocasse Tonico e Tinoco no toca fitas. Meu avô na minha memória ou estava ouvindo Tonico e Tinoco ou estava vendo SBT. Nem lembro se na Kombi tinha toca fitas, pra ser sincera. Me lembro de quando meu avô viu um vendedor de uvas na beira da estrada e fez com que meu pai parasse um pouco mal humorado e comprasse duas caixas de uva que comemos fartamente no resto do trajeto. Me lembro de quando chegamos em Jaú ter me impressionado o tamanho da minha tataravó, com quase 2 metros de altura, deitada na cama com parte das pernas pra fora. Me lembro que meu tio Joãozinho, em Guariba, insistia que era porque nossos parentes tinham origem alemã que eles falavam “cutunete”. 

Durante o ano todo, quase todos os domingos, eu ia com o meu pai pra casa dele. Lá tinha um quintal, uma horta com boldo, capim cidreira, figos e no corredor, do lado do córrego, as bananeiras. Lá tinha um gato preto chamado Isaú todo pulguento e três vira-latas: o Tchico, a Tchica e a Princesa, uma dobermann preta que eu morria de medo. Lá tinha duas Variantes na garagem, uma vermelha e uma azul e quando a gente chegava não tinha campainha, não: do portão de ferro a gente batia palma, gritava “ô, de casa!”. Meu avô aparecia na janela, a gente entrava, passava entre os carros e a horta e meu avô abria a porta de madeira da sala ainda de pijama. Na verdade, ele passava grande parte do domingo de pijama listrado, sentado no sofá, conversando com o meu pai e assistindo SBT. As vezes ele ficava de pijama até o horário que a gente ia embora e ele tinha que se arrumar para o culto na igreja. 

Nesse ano lembro de um sorvete de morango que ele fez pra gente. Eu me orgulhava de dizer que meus dois avôs faziam sorvete, bem na época que aquela maquinha podreca de sorvete da Eliana estava na moda entre os brinquedos. Eu ia lá pra brincar com os meus primos e com a minha tia. Lembro que ele me parou no corredor e falou assim: “Julinha, vai lá no freezer e pega um sorvetinho pra você, meu bem.” Ele me chamava assim, Julinha, jeito que nunca gostei que ninguém me chamasse. Só ele podia. 

Em outubro daquele ano ele foi internado. Daí nunca mais vi meu avô. Foram os meus tios maternos que cuidaram de mim no dia do enterro. Nesse dia, meu primo percebendo que eu estava triste e que não queria brincar, tentava conversar comigo e entender aquilo que pra ele, ainda naquele momento, era um grande mistério. 

– Você não quis ir lá se despedir dele? Teve medo? Dizem que eles ficam todos duros, gelados no caixão, com algodão no nariz e tudo...
– Minha mãe disse que era melhor eu dormir hoje aqui, que eu ia me impressionar.
– Você tem medo de morrer, Ju?
– Não sei. Um pouco. Não tenho medo de ficar lá, parada com algodão no nariz, não. Tenho medo mesmo é que a minha mãe morra. Não quero que ela morra nunca, mas acho que não tem jeito. Todo mundo morre um dia, né? Disso, eu tenho medo.

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