terça-feira, 25 de maio de 2010

Arturo

Às vezes sinto a violência de um tiro na cabeça ao olhar para uma folha em branco, por muito tempo escrevi a máquina como quem maneja um revólver, não que eu o desejasse assim, como se escrever fosse a morte; olhar para uma folha em branco me causa toda brutalidade deste gesto indiferente a tudo em minha volta, não que eu fosse capaz de realizá-lo, mas em 1997 eu o fiz, inúmeras vezes, sem contudo escrever uma única palavra. A escrita ainda não participava deste jogo insano. Ao menos tal como ela escrita em palavras derramadas – e quase escrevi desarmadas – numa extensão de frases sobre a página. A esta altura de minha vida eu gozava um certo cimo de dor e desencanto, a solidão narcótica era o rasgo por onde, ainda, alguma coisa podia me encontrar proveniente de uma origem que eu, então, ignorava. Era ainda o meu começo, a ilusão desastrosa de que algo podia restar abaixo de um céu que passa. A fonte dos dias não trazia testemunhas, a sua claridade sobre as folhas era igual à imensidão ferrosa que vinha recobrir a tudo de névoas mal despidas. Eu não lamentava a minha solidão, adentrava, desajeitado, no arsenal de falhas que viriam raiar na palavra desmedida... Adentrei-a o quanto pude, esgotei todo sangue que pude resguardar. Nesta insanidade conservada em poças, o torpor desfigurado arrastava as cadeiras próximas, meus olhos reviravam na cova de minhas mãos – mão e olho insensíveis às trocas do universo. Nesta absurda imensidão dormi num corpo amansado pelo tédio, éramos vazios eu e eu em um corpo duplamente enfermo. Havia momentos de prazer, todos eles, um deleitar sangüíneo e frio que amamentava as nuvens, fazia chover no rosto apaixonado... Eu sorria, acreditava que a fonte seca poderia, então, seduzir a pedra. Eu era uma contemplação de poças, uma aproximação sem ritmo e as minhas alucinações eram aquelas, suponho, do feto abortado por um relâmpago no tempo. Então, fui parturiente em meu cadáver, parturiente de mim mesmo. Tinha de parir um deus para que morresse novamente e ressurgisse na solidão que roda, uma primeira testemunha. Era claro como minhas dívidas não haviam tocado a imensidão perdida nas partes de meu corpo, a planta de meus pés era uma raiz que ria da desordem, meu riso era a roda de lábios num moinho turvo; eu mergulhava sem contar os passos, eu era esta fissura que perdeu seu nome ao limiar. Colocava os riscos e desenhava do outro lado das janelas, onde o hálito cumpria seu destino de apagar. Nas portas de um asilo em que amigos loucos regressavam eu queria então morar, eternamente sobre o campo. Descalço, acariciando o chão, dormindo naufragado em orações que desprendiam da lâmpada acesa e apagada, minha cama no alto de uma depressão solar, as florestas da infância revividas no enforcado... naquele homem lindo que desejou tocar a terra e desejou dormir cercado pelo nunca. Cajado em punho, esta terceira sombra então caminhava a sua frente, misturava-se a tudo aquilo de que então não se podia despedir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

sejamos docemente biográficos