sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Daniel Lühmann

mil novecentos e noventa e sete foi quando completei a primeira década, o que significa que em oito de julho daquele ano eu trazia nas costas a leveza de três mil seiscentos e cinquenta dias de existência acumulada, mais os dois vinte-e-noves de fevereiro que tinham me percorrido até então.

pelo que me lembro com a ajuda de algumas matemáticas feitas nos dedos, estava em fase de adaptação à nova cidade, a segunda das sete idas e voltas que contabilizo até aqui. foi a época em que comecei a usar calças jeans pra ir à escola, com a barra desfiada que eu achava o cúmulo da transgressão e denunciava a pederastia vindoura. estava na quarta série, era o último ano daquele lado do colégio, o destino depois seria junto dos que pareciam grandes e inatingíveis.

morávamos, então, numa casa da cor mais peculiar que tinha visto na vida, mistura de bordô, ameixa, berinjela, toda sorte de roxos. ficava bem no alto de um morro muito íngreme, que subíamos de costas eu e meu irmão, numa tentativa de aliviar o peso psicológico de lutar contra a gravidade enquanto voltávamos da natação, que ficava justamente no pé da rua.

o proprietário dessa casa tinha também uma chácara na propriedade vizinha, à qual tínhamos acesso livre. lá vezenquando aconteciam churrascos, nadávamos pelados, comíamos manga no pé, jogávamos um monte de futebol, batíamos punheta, íamos e voltávamos mergulhando sem sair pra respirar, ficávamos queimados demais de sol. sempre passavam gambás correndo pelos muros e os relâmpagos que se rabiscavam naquele céu eram inigualáveis.

o vizinho de trás tinha um mamoeiro que quase caía dentro de casa. ele era mal encarado. eu morria de medo de buscar a bola quando caía na casa dele, porque uma vez andei sobre o piso que ainda secava e ficou desnivelado pra sempre.

tinha também uma minipapelaria na mesma quadra, que vendia doces os mais vagabundos: dip'n'lik, moranguete, uns açúcares saborizados dentro de embalagens de plástico em forma de fruta. no caminho da escola tinha outra papelaria, mais guarnecida. eu era assíduo nas duas e, entre uma e outra, tinha uma loja que alugava decoração pra festas infantis e tinha um mickey deformado pintado na fachada, exemplo elevado da mais pura antipropaganda.
 
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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Suzana


Em 1997 eu tinha 14 anos e sabia que a ordem natural da vida era: nascer-viver-morrer. Porém, quando a mãe da Marina morreu do coração, o tio da Roberta em um acidente de carro e a filha de um amigo do meu pai, aos 14 anos, tive certeza que o mundo estava fora dos eixos.
Naquele ano, um pouco antes das férias, cortei o cabelo curtíssimo, como o da Amelie Poulain, mas sem a franja. Naquelas férias, meu pai pediu um táxi, solicitou que fosse levado à rodoviária e, lá, pediu um bilhete para o primeiro ônibus que saísse. Foi parar em Tailândia, no Pará, mas isso só fiquei sabendo muito tempo depois. Foram as últimas férias da família toda junta, mas isso, também, eu só saberia muito depois. 
Naquele ano me apaixonei pelo menino-mais-bonito-do-colégio, participei de um teatrinho cujo tema era prevenção às drogas, fiz uma festa de aniversário em que fui feliz, cantava “Depois do prazer” em tom choroso, para debochar e, como todos os meus amigos, dizia odiar Claudinho e Bochecha, mas é provável que um dia tenha cantado aquilo, porque grudava na cabeça.
Eu queria ser jornalista, eu estudava piano em um conservatório em que as gurias me desprezavam, eu fazia caminhada sozinha, eu tirei o aparelho dos dentes, eu ganhei um livro de Camus, no Natal, ponto muito importante e que definiu muito do que veio depois.
Fizemos uma festinha de formatura de oitava série cujo convidado de honra era o professor de matemática, que eu deixava falando sozinho na sala, levantava e ia embora, quando a aula era no último horário. Ele gritava para eu voltar, lá de dentro, dizendo: Vou tirar 5 pontos! Dez pontos! Não sei se ele aumentava infinitamente a nota que me tiraria, mas a verdade é que ele não tirava nada. Ele possuía uma aura de fracasso que era muito anterior ao nosso desrespeito e, de certa forma, aos 14 anos, era o professor/adulto com quem mais poderíamos nos identificar. Eu olhava para trás, no fim do corredor, e dava tchauzinho. Quando ele se matou, senti remorso por isso. 
O ano acabou, a festa acabou e, no final, estava ao lado do aparelho de som ouvindo Nenhum de Nós e tomando um vinho de garrafão: Depois da última noite de festa, chorando e esperando, amanhecer, amanhecer, as coisas aconteciam com alguma explicação, com alguma ex-pli-ca-ção.
Explicação não tinha e eu fui em uma sessão espírita em que, segundo meu tio, as pessoas era mesmo possuídas. Assistindo ao transe, tive uma vontade tremenda de rir, e pensava na música do Cazuza, já que o tema daquela noite era a piedade. Acho que em alguma hora não controlei direito o riso, porque um homem me olhou com uma cara muito feia. Murchei.
Quem eu era? Não sei. Eu queria uma vida grande, cheia de emoções, sempre ensolarada. Coisas que, no mundo adulto das pessoas da minha casa, não tinha.
Um milhão de recortes mais poderia fazer de 1997, mas hoje estou triste e fico por aqui.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Renan Nuernberger


(1) uma linda camponesa estava engajada no Movimento dos Sem-terra e se chamava Patrícia Pillar. Olhos de diadorina, duas gemas que nenhuma maquiagem fake esconde, entre os Mezenga e os Berdinazzi, Patrícia Pillar fez de si e seu personagem o próprio estandarte das campanhas pela reforma agrária. Antônio Fagundes era petista e galã. As famílias pequeno-burguesas não se escandalizavam quando a Rede Globo apresentava a Comédia da Vida Privada (esquetes humorístico que nada revelavam sobre o ridículo das convenções sociais e sobre a apatia da classe média liberal). Não havia reality shows e o presidente era o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Eu tinha 11 anos e ouvia o Acústico MTV dos Titãs.

(2) um ator de soap-opera chamado Joey Tribbiani estava no auge do sucesso como Dr. Drake Ramoray. Jennifer Aniston, a mina do Brad Pitt, ainda não sabia mas pagaria um pau pra ele, seu amigo (todas as minas de todos os caras pagariam pau pra ele). As soap-operas brasileiras chamadas novelas (as novels brasileiras se chamam romances e os romances são a mesma coisa em qualquer lugar) seguiam como produto de exportação pós-Bossa Nova. Joey não gostava de Bossa Nova mas gostava das novelas da Globo, principalmente das atrizes. Era fissurado numa atriz chamada Thalía. Nem todos em New York – e ele era de New York – sabiam estas coisas exóticas mas sabê-las eram um afrodisíaco e tanto e seu sex appeal era enorme e só crescia entre as mulheres da cidade. Um seu amigo meio loser chamado Chandler Bing era assíduo frequentador do show de stand-up comedy de Jerry Seinfeld (não havia stand-up no Brasil?) e sonhava conhecê-lo pessoalmente e, para isso, aproximou-se de um gordinho meio loser chamado George Costanza. Uma amiga de George e Seinfeld, Elaine Benes, era uma agente literária que (como todas) pagava um pau pra Joey. O papo-cabeça e as diferenças entre novelas e romances, as especificidades da castanha brasileira e outras coisas assim (a série era sobre nada), brochavam a máquina que era Joey Tribbiani. Mas foi ela, afinal, que lhe sugeriu o presente perfeito para Jennifer Aniston: o livro Sex and the city de Candace Bushnell.

(3) um padre católico de tendência carismática e professor de educação física gravava um disco. Marcelo Rossi seria o primeiro entre tantos outros padres-cantores de voz mansa e corpo em forma. Eu era dispensado da Educação Física por prescrição médica mas fazia aulas de natação duas vezes por semana (problemas na coluna vertebral). A Igreja Católica soube, como a Apple Computers soube, sair da pindaíba em que se metera: aprendeu com as concorrentes (as Igrejas Evangélicas) como se aproximar de um público jovem e bem disposto. Steve Jobs, co-fundador da Apple, levou um pé na bunda nos inícios dos anos 90 de sua própria companhia. Levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima como CEO da mesma Apple, agora pedindo arrego a Microsoft. Saca? Jobs no ano seguinte criou o iMac e não tardaria para o novo papa, Bento 16, criar uma conta no Twitter. A Rede Globo retrocedeu em seu aspecto laico (cancelou a Comédia da Vida Privada) e todos os domingos pede a bênção do Padre Marcelo para aumentar o ibope do Fantástico. Mas o Deus da Record parecia mais ungido. Silvio Santos era um cristão novo. Eu frequentava a Igreja Batista do Ipiranga e aguardava ansioso as tele-aulas sobre o Apocalipse.

(4) MCMXCVIII foi o nome do primeiro livro do poeta Dirceu Villa, lançado um ano depois de 1997 (naquela época eu jamais saberia…). Escrevi meu primeiro poema em maio de 1997: um acróstico com o nome de minha mãe que surpreendeu algumas professoras de português. Uma promessa literária ou talvez um grande pastor. Eu estava na 5º série, estudava no Colégio Luterano de São Paulo e não gostava de Spice Girls, Só pra Contrariar, Backstreet Boys ou É O Tchan – embora ouvisse, vez ou outra, Raimundos ou Racionais. Eu era fã de Engenheiros do Hawaii.

(5) a primeira Parada do Orgulho GLBT em São Paulo, um estado evidentemente retrógrado vice-governado pelo membro da Opus Dei Sr. Geraldo Alckmin, foi um must! A Rede Globo apresentava a Comédia da Vida Privada e quase nunca exibia gays em sua grade de programação (apenas como caricaturas). O beijo, o beijo concedido entre dois atores do mesmo sexo ficou para outro século: no ano seguinte explodiriam a Tropical Towers da novela Torre de Babel só para dar fim ao romance entre Christiane Torloni e Silvia Pfeifer. Explodiriam as Twin Towers para impedir o beijo entre dois atores do mesmo século? Por que não há X-men gays? (eu lia muita HQ nesta época). Diadorim não se esconderia sob uma maquiagem fake na São Paulo de Geraldo Alckmin? Até quando as relações homoafetivas seriam pecado para as Igrejas? Meus pais me presentearam com o Guia dos Curiosos de Marcelo Duarte e eu descobri que o primeiro beijinho – assim quietinho – de novela foi em 1951 entre Vida Alves e Walter Foster. Sua vida me pertence: um escândalo! Eu parei de frequentar a Igreja Batista e as coisas todas mudariam: Caetano Veloso lançava o Verdade Tropical e o Gugu Liberato apresentava o Domingo Legal. Pouco depois, Caetano cantaria “Sozinho” no Gugu e alguém me falaria sobre um tal de Drummond.
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sábado, 25 de junho de 2011

Inês

Noventa e sete pôs-me a caminho de uma faculdade ao virar da esquina (estudar fora era impensável para a minha mãe e o meu pai conseguira sem esforço vender-me a ideia do curso de direito). Vivia desgostosa, refém de uma boca e de uma cabeça que nunca se deixou esquecer. Anulada por ele, respeitada pelos outros, cumpria quase exemplarmente o papel de melhor aluna com personalidade forte e, no entanto ou por isso mesmo, queria ser normal como toda a gente. Ainda achava que aos vinte e cinco haveria de estar casada e com filhos. Lia muito (Saramago era então o meu autor e eu já me preocupava com a arrumação dos livros), tinha jeito para línguas e galopava sempre que possível. Foi o ano em que comecei a viajar por minha conta (Londres e Barcelona). Via cinema europeu, sobretudo francês. Tapava bastante menos o corpo, puxava pelo ruivo e vincava os olhos a escuro. Oferecia-me de vez em quando. Ignorava que nunca me tinha sentido amada e contava o tempo para sair de casa. A vida só chegou depois.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Sérgio Alcides

Júlia, cara,

se houve um ano crucial para mim, foi 1997. Nesse ano (que fui ver chegar na praia de Copacabana) saí do Rio, onde eu tinha nascido, e nunca mais voltei para ficar. Fui para Mariana, no interior de Minas Gerais, e me tornei professor. Nunca tinha dado uma aula antes. Peguei de saída três turmas, lotadas de gente não muito mais nova do que eu, gente ótima e acolhedora. Inclusive o Pacapau, meu primeiro aluno doido, do curso noturno, que tinha ataques de perguntação incessante e aleatória, e me cumprimentava com uma saudação aborígene: Hau!
Nesse ano deu muita jaboticaba, de doce memória. Era uma vida boa, envolvida em lençóis do melhor algodão do passado. Eu ainda tinha meu heróico Fusca 1977, que já estava nas últimas, mas servia para me levar até Ouro Preto em históricas peregrinações, para ver aquela lua cheia incomparável. LDZ (ex-OZ) 0005. Azul, sempre sujo, porém sempre celeste. Ainda mais agora, quando já não existe e talvez até esteja limpinho lá dentro de sua garagem-inexistência. Que amigo fiel! Reclamava muito dos maus-tratos, mas nunca me deixou a pé.
O prefeito da cidade era um gângster que tinha sido condenado por crime de corrupção. Durante o dia, despachava na Prefeitura; à noite, voltava para sua horrenda mansão verde-musgo, em prisão domiciliar. Era o maioral daqueles penhascos.
Eu morava numa casinha térrea, na subida para a igreja do Rosário. Rua Monsenhor Horta. Minha choça de pastor inárcade. Ficava para lá da belíssima Ponte Alphonsus de Guimarães, feita de grossas e escuras toras de madeira, por cima do “pátrio ribeirão” do querido Cláudio Manuel da Costa. Turvo e feio... Eu passava por ali todo dia, dizendo para mim mesmo:
E o sino canta em lúgubres responsos:
Ponte Alphonsus! Ponte Alphonsus!”
Num dia de faxineira, saí para ir dar aula sem levar a chave. Quando voltei, ela (nome?) já tinha ido embora; fiquei na rua. O Mágico de OZ me levou até a casa dela, num bairro distante, um morro pontudo que o prefeito pelou e cobriu de casebres sem água corrente nem nada. Encontrei lá o marido dela, que não estava tão bêbado que não pudesse informar que ela devia estar na casa dos pais, num bairro próximo. Eu nunca saberia achar o caminho – e ele então mandou a criançada ir comigo. Festa! Iam andar de carro! Meu velho Fusca para eles era uma Ferrari, e o ruído irritante de mil parafusos frouxos era uma sinfonia, que os cinco pequenos e pequenas acompanhavam cantando. Quinze minutos depois, em outra parte da periferia da periferia da periferia, chegamos à casa dos pais da faxineira. Fui recebido pelo ancião, com boa (e longa) prosa. Saleta apertadíssima, com a porta da frente sempre aberta, e muita escuridão lá para dentro. No ar, um cheiro de TV nova em folha misturado com terra úmida, porque não havia soalho. A faxineira não estava, talvez chegasse mais tarde. Quando apareceu, com a chave da minha casa, já tinha anoitecido. ‘Perdi, ganhei meu dia’ – pensei, ao contrário do verso de Drummond.
‘Ganhei, perdi meu ano’. Estávamos em pleno regime FHC. Instituição do cinismo como padrão ético oficial. Perseguição à universidade pública. Proliferação nacional de shoppings e deliveries e think-tanks impensáveis. Extirpação violenta da menor sombra de espírito público. Privatização a preço de banana das jóias da tia velha. Vendagem sem precedentes de tintura loura para o desperdício das moreninhas. Atônita busca de um eufemismo em inglês para “bandalheira” na política. Exterior pop glamurizando a banda conformista juvenilóide. Enfim, era a alvorada neoliberal do nosso tempo. Tinha sido inventado um novo tipo de fascismo.
Eu ia fazer trinta anos, e não avistava nenhuma esperança no horizonte. Tinha terminado de me tornar adulto no tempo dos adolescentes retardados, cujo projeto de vida era (e ainda é) basicamente só tirar a bermuda quando for imprescindível vestir a fralda geriátrica.
No fim do ano, com minhas dívidas reais e simbólicas, eu já estava ligado a São Paulo, para onde fui depois. O coração dos tempos, capital mundial do PSDB, metrópole também dos resistentes, das hipóteses de civilização mal-ajambradas que ainda eram indigestas para o canibalismo do sistema financeiro e abriam algumas brechas para quem quisesse respirar. Eu queria muito.
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Ricardo Reis

Minha memória costuma não se apegar à números. De forma que a precisão das épocas nem sempre obedecem aos anos. Pelo menos é assim que me parece. Quando falou de 1997 eu não achei nas gavetas as cartas, as imagens e as palavras que preencheram esse espaço. Foi necessário contar os anos, fazer aproximações e inventar um pouco.

(...)

Acho que 1997 foi o ano que vim pra São Paulo, mais especificamente, São Caetano, a cidade que morei por mais tempo até hoje, dos 10 aos 18 anos. Era a oitava vez que eu mudava de cidade. Se estou certo, foi um ano que influenciou muitas coisas em minha vida, evidenciaram-se as faltas, as lacunas, os medos e as incapacidades.

Vinha de Minas Gerais, do interior de Minas, duma cidade pacata, de ruas de terra e de alguns amigos. Até ali, até aquele momento nunca havia pensado sobre ser. Criança que era, apenas existia. O viver se pautava pelo prazer e pela vontade. Os costumes e modos obviamente já estavam engendrados em mim, como em qualquer um, imagino eu. Mas eu não pensava nisso, tudo se integrava, de uma maneira ou de outra, parecia que cada um era o que era, cada um era pro que nascia, não tinha porque questionar isso. Tinha?

Observar de longe as crianças brincando nas festas enquanto eu permanecia sentado nos pés de minha mãe, não era um problema. Meu silêncio não me incomodava. Passar horas fazendo guerras interestelares entre Comandos em Ação e monstros desenhados em folhas sulfites era cotidiano. O pedestal que sustentava minhas paixões não era lá tão alto, nem tinha barreiras assim, tão intransponíveis.

O choque, porém, não tardava. Caí numa cidade provinciana e um tanto cerceada, pra não dizer reacionária, pelo menos naquele contexto que eu habitava.

(...)

Tive algumas paixões na infância, alguns amores. Amores de um menino qualquer, que se contentava em alimentar essas relações pela observação. O silêncio bastava. Afinal de contas é assim que uma criança sente, com os olhos. A eloquência do corpo era inexistente, ou subjetiva demais. Pelo menos era assim pra mim.

(se bem que em alguns momentos eu já tinha observado meu corpo, já presenciara alguns sentires e alguns prazeres, mas que não cabem aqui, não agora).

(...)

Caí numa escola particular, de costumes peculiares. Violenta inclusive (pra meu olhar da época, ou melhor, pra meu olhar de mais velho olhando pra época).
Tenho a impressão que tudo se pautava pela imagem e pela quantidade.

As crianças logo perceberam que havia chegado um menino novo, vindo de Minas, tímido que só e muito, muito mais criança que elas. Outra coisa que só vim perceber depois.

Acho que prezava as diferenças. Meu sotaque não me dava vergonha, e nem achava ruim que os hábitos e trejeitos de um não fossem como os de outro. Não me pesou nada ignorar todos os esportes que os meninos gostavam, passar batido pelo futebol e ir fazer dança, coisa de viado praquele pessoal todo (até basquete, pra eles era coisa de bicha).

Tinha um amigo muito querido nessa época, convivíamos intensamente. Mas aos olhos daquele bando de moleques, éramos namorados.

Talvez uma complicação a mais que viria pesar sobre minha imagem era a necessidade de espaço. De um espaço pequeno e fechado. Tinha medo, assim como tenho ainda, de sair de lá. Alcançar o outro era sempre uma baita distância, digo isso hoje, claro, na época o nome que eu dava era timidez, ou coisa parecida. Naquela escola as novidades precisavam ser consumidas, do tênis da moda, ao menino novo, vindo do interior.

Não sabia como reagir àquilo tudo, ninguém observava o tempo, então era difícil conseguir lidar com aquele furor todo, das crianças que começavam a descobrir o calor. Eu tinha medo, sentia que essas trocas não eram assim qualquer coisa, eram um qualquer coisa com alguma outra coisa a mais. Pra mim, até então tudo deveria acontecer conforme a minha vontade, até que vi que as coisas não eram bem assim.

Fugi muitas vezes. Era o que me cabia, era o que meu repertório me permitia. E não tinha preparo algum para atuar nisso, eu precisava ficar na minha casca um pouquinho mais. Quem não vê tempo, raramente vê espaço, assim, me atropelaram. Vi que teria que enfrentar aquilo, quisesse ou não.

Meu primeiro beijo foi à força, com um esquadrão de umas dez crianças observando e forçando a barra, na escada do terceiro andar, na frente da sala de inglês.

Dessa vez não consegui fugir.

(...)

Por ser um ano de chegada, as imagens pré-estabelecidas não estavam ainda tão nítidas e os preconceitos ainda não estavam tão severos. Foi um ano bom lá pelas tantas, tinha meus amigos, meu pequeno grupo de bons amigos, me orgulhava por dançar; tinha minha pasta de desenhos e inventava minhas paixões. Nessa época, a invenção se chamava Nara, era da manhã. Menina calada, clara e de olhos azuis.

Não despertei o menor interesse nela, apesar de tirá-la duas vezes pra dançar nessas festas de garagem. Até hoje não sei da onde veio a coragem.

Mesmo assim, ela pairou um pouco sobre meu peito, sobre meus  meus olhos, mas depois mudou de nome, se chamou Samira, depois, sei lá o quê.

Às vezes acho que amava a distância, me apaixonava por quem não alcançava. Pra não correr, nunca, o risco de não conseguir alcançar quem está perto. Desde pequeno fico buscando o ideal. O pior é que nunca acreditei em Papai Noel, nem em Deus, mas na perfeição sim. Acho que por medo de não conseguir habitar um lugar que não existia, preferia me recolher e observar o mundo pensando em como dialogar com tudo, ao invés de, simplesmente, lançar a primeira palavra:

-Oi.

E assim foi 1997,  um ano que pela primera vez meu existir se chocou com o existir alheio. Um ano marcado pela dança, pelas brincadeiras, desenhos, amores, Fabrícios, uns outros nomes e alguns insultos.

José A. Pereira

Cabelo comprido, magro, moreno, com dois pêlos rapados na cara.
Apenas a fazer uma disciplina do 12º ano em Guimarães - matemática - aprendi a gostar da coisa (ou antes, a ter alguma curiosidade e inteligibilidade sobre o assunto).
Passava os meus dias a desejar a hora do exame final para ingressar nas belas-artes, que já ia com um ano de atraso.
Seguríssimo de que não me escapava tal objectivo, mesmo com a consciência que o mínimo erro, distracção, ou falta de conhecimento, nos minutos do exame nacional, me poderiam vedar tal objectivo por mais um ano, ou para todo o sempre.
Manhãs a dormir, tardes no bar - casa do arco - a preparar o set para o fim de semana, sempre à volta dos discos, de batida tecno ou house.
Domingos na rádio Fundação a acompanhar o meu primo, esse sim percebia do legado musical.
Eu era um bétinho de all-star cor de laranja!
Lia as biografias de Leonardo, Miguel Angelo, Rafael, Rembrandt...
Com uma moeda de 50 escudos, que correspondia a 2 oportunidades de jogo sem falhar níveis, na máquina puzzle bubble do salão (onde agora está o Laboratório das Artes), dava 2 voltas ao jogo, que correspondia a hora e meia de animação feita de manípulo com a mão esquerda, botão de disparo de bolas com a direita, e correspondências cromáticas no ecrã, muita adrenalina (o único jogo que não me levava a bancarrota financeira).
Com companhia jogava bilhar.
Pensava que ser pintor me dava o privilégio de mudar o mundo com imagens, que tinha uma missão... mas a vida que levava era completamente alheia ao que acontecia à minha volta.
Zétó era como me chamavam.















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Érico

Eu era um maldito nerd, engenheiro wanna-be que penteava o cabelo para o lado. Entretanto, já tinha lido todo o Rubem Fonseca e sabia de cor a numeração Köchel dos concertos e sinfonias de Mozart.

Foi o ano em que descobri na prática, com os colegas que disputavam estágios, como as pessoas do mundo corporativo podem ser felasdaputa. Portanto, foi também o ano em que resolvi parar de estudar as transformações químicas do ácido ózico ou a viabilidade econômica da hidrólise enzimática da polpa de celulose para ser feliz de verdade, relegando a feladaputagem e o conformismo aos profissionais.

De fato, a vida melhorou muito desde então. Por exemplo, passei a raspar o cabelo em vez de tentar discipliná-lo.

Elias Mendes

Em 1997 eu estava no limiar da inocência, e eu não sei dizer se é exatamente por isso que a imagem mental que tenho desse ano é dourada, reluzente, doce e extasiante. Digo limiar da inocência porque depois desse ano, entrei numa verdadeira espiral descendente em termos emocionais, em termos inclusive de autoconfiança. Posso ter ficado bem menos ingênuo depois, mas prefiro até hoje aquela inocência, aquela absoluta falta de noção, de limites ...

Materialmente eu era mais pobre, mas acho que emocionalmente eu nunca fui tão rico em toda minha vida. Estava na sexta série, mas eu deveria estar na quinta, por que não precisei fazer um dos anos. Se fosse hoje, seria o sétimo ano. Não tinha ambições, a não ser a de deixar todos os meus personagens no Final Fantasy 7 no level 99, coisa que nunca consegui, por falta de persistência.

Esse foi o ano do meu primeiro beijo, do meu primeiro “trabalho”, das minhas primeiras responsabilidades. Tive 11 anos durante o ano inteiro e fiz 12 quando ele terminou. Eu mestrava RPG, era o líder da classe ao longo do ano inteiro no colégio e tinha a simpatia da diretora da escola, uma leonina que hoje em dia é minha cliente. Ela sempre me escolhia pra representar a escola em todos os eventos, e isso foi na verdade desde 96 até 98, todo o período de Saturno em Áries.

Eu ainda era coroinha, escoteiro e acho que nunca, na minha vida inteiro tive tantos amigos. E eu fazia teatro no colégio. Aliás, o teatro só existia porque eu queria, eu escrevia as peças, dirigia e atuava nelas e mobilizava todo mundo pra participar, e o suporte era a amizade da diretora leonina, que tudo o que eu pedia atendia, tudo o que eu aprontasse perdoava. Acho que eu era o único que entrava na sala dela pra conversar com ela e não pra tomar bronca, nunca entendi até hoje porque todos tinham tanto medo dela.

Imitava os professores, jogava truco na hora do recreio, xadrez nas aulas de educação física, rpg antes e depois da aula. Tinha uma coleção imensa de revistas dos X-Men, herdei a coleção de um primo e comecei a comprar os números atuais naquele ano. Ia de ônibus pro colégio e levava comigo minha prima, que tinha uns 7 anos na época, arrastando ela pela mochila. A escola Básica Venceslau Bueno não ficava muito longe, era no bairro vizinho, mas mesmo assim minha mãe fazia questão de que eu fosse de ônibus porque ela tinha medo de eu morrer atropelado ao atravessar a rodovia. Frequentemente eu voltava a pé pra casa, vendia passes e comprava sorvetes ou revistas dos X-Men.

Dormíamos frequentemente na casa da namorada de minha mãe. Ainda estava me acostumando com a novidade (o fato de minha mãe namorar mulheres), que era recente. Mas ela era legal, frequentemente dava dinheiro pra mim e minhas irmãs gastarmos no shopping e geralmente íamos no cinema.

Ainda tinham os verões na casa da minha tia, onde íamos a praia, escalávamos os morros próximos, tomávamos banho de cachoeira e éramos felizes.

E o meu trabalho: uma amiga da minha mãe abriu uma espécie de lan house, mas sem computadores, apenas com videogames e eu ficava lá pelas manhãs, “trabalhando”. A única responsabilidade era a de abrir a loja no horário certo. Na verdade passava a manhã inteira jogando vídeo-game porque ninguém nunca ia jogar pela manhã ...

Bom, não sei porque, tudo o que eu fazia naquela época era muito bom, muito legal, e tudo o que eu queria acontecia. Vivia em empolgação constante, em gozo permanente. Nunca fui tão criativo, produtivo, nunca vivi tanto a vida. Hoje eu faço muitas coisas, viajo, trabalho e enfim, nada é “tão legal” quanto era naquela época. De 2000 pra cá a vida deixou de ser dourada e ficou cinzenta. To querendo entender como é que rolou, tão subitamente essa mudança na cor das “lentes” usadas por mim pra enxergar a vida. Não sei, talvez eu nem use mais lente nenhuma hoje em dia. Mas 97 é o meu “Eldorado” perdido. Estou até hoje tentando voltar, mas acho que esqueci o caminho. Talvez nada tenha sido tão bom, talvez tenha sido só a impressão, quem sabe um delírio, mas eu queria viver isso de novo, mesmo que tenha sido apenas uma “febre delirante”. Que doença boa! E não sei, acho que não é porque eu era criança não. Antes dessa época as lembranças são bem mais tenebrosas ...

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Elias Mendes

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Orlando Tosetto

Em 1997 eu fiz trinta anos. A Bíblia nos dá setenta, depois dos quais tudo é “cansaço e chateação”; eu estava ainda aquém da metade, mas prestei atenção na efeméride. Comprei um disco chamado OK Computer e um livro chamado Fragmentos de um discurso amoroso – não tenho mais nenhum dos dois. Perdi cem discos de vinil para uma praga de cupins. Acordei numa sexta-feira ainda bêbado do uísque da quinta e vomitei no banheiro do trabalho. Uma puta pernambucana cantou I like Chopin para mim em japonês. Comprei uma máquina de lavar e uma televisão estéreo – ainda tenho as duas (a televisão está quebrada). Não tinha telefone nem internet, e meu computador era um 486 DX4 ou algo assim. O Palmeiras não ganhou nada. Perdi um casal de amigos. De setembro em diante, falei mais inglês e castelhano do que português, e virei don Orlando para um bando de chilenos. Em outubro, um filipino carente telefonou para a minha senhoria, que passou a me achar um sujeito importante porque me ouviu falando what?! Conheci gente que veio a me detestar e depois se arrependeu. Eu tinha um cachorro vira-latas que se machucou me defendendo de um pastor alemão. Viajei a Belém do Pará e vi um retrato de Karl Marx num shopping center de lá. Minha filha fez dois anos. Eu lia jornais. Eu tinha um walkman. Comprei camisas que ainda tenho. Eu vinha para cá, tempo e lugar; mas sem saber, como não sei para onde, tempo e lugar, estou indo agora.

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o'sevla (Cristina de Oliveira Alves)

O ano de 1997… como começar? Se estivesse em 97 diria que estava então num começo, que nada sabia, nem desse ano nem dos vindouros, sabia, talvez, que não voltaria a ser antes de 97, não sabia que seria desde aí que sou o que sou hoje, mas não voltaria a ter 26 anos, teria outros anos e seria eu mesma uns anos mais, lembro-me sem saber o como, não conseguia dizer e menos ainda fazer “Pára Cristina”, mesmo que em alguns momentos quisesse.

Lembro-me que me sentia impelida a mudar de modo radical. Escrevi nesse ano “o meu projecto vida sinto-o parado: continuo a viver em casa dos meus pais; viajei mas não vivi ainda um longo período fora do país; tenho uma relação de namoro prolongada sem conseguir descobrir novos modos de sentir, novos encantos e tenho um namorado de quem gosto muito mas ele acha que é assim que tem de ser, sem paixão, ao fim de 6 anos de relacionamento”.

Lembro-me que li o “Siddartha” do H. Hesse, o “Werther” do J.W. Goethe, depois a “Queda” do A. Camus e ainda “A vida depois de Deus” do D. Coupland, sei porque fui transcrevendo algumas passagens.

Do Camus retinha sensações do passado, se o presente parasse, «o silêncio que se seguiu, na noite subitamente parada, pareceu-me interminável. Quis correr e não me mexi. Tremia, julgo eu, de frio e de surpresa. Dizia para mim mesma que era preciso agir rapidamente e sentia uma fraqueza irresistível a invadir-me o corpo. Esqueci-me do que então pensei: “tarde demais, longe demais…” ou qualquer coisa deste género. Escutava ainda imóvel. Depois em passos rápidos, debaixo da chuva, afastei-me. Não preveni ninguém.»

Do Coupland vinham premonições do futuro, se o presente ficasse, «a seguir fiquei mesmo cheio de solidão e tão farto das coisas más da minha vida e do mundo que disse para comigo: “Meu Deus, faz de mim um pássaro… É tudo o que sempre desejei… um pássaro branco e ágil, livre de vergonha, de maldade e de medo da solidão, e dá-me outros pássaros brancos com quem voar, dá-me um céu tão grande e tão vasto que, se eu nunca quiser descer para a terra, não tenha que o fazer.” Mas Deus, em vez disso, deu-me estas palavras e eu digo-as aqui.»

Em 1997 eu sentia que era eu só mais eu.

Resolvi que tinha de aprender a cair, fiz um curso do Peter Michael Dietz, fiquei cheia de nódoas negras espalhadas pelo corpo, o espírito cheio de força, pensamentos coragem, e foi que, deixei o sonho de ser bailarina cair por terra, olhei o ar à procura do céu.

Com um nó na garganta e um aperto no coração fui ter com o meu namorado e disse que não queria mais namorar… esqueci entretanto o que inventei do lado de lá do nó, demorei a sofrer desta. Mas eu achava que se vamos enfrentar tempestades e vendavais só podemos deixar ir connosco quem tiver a mesma ousadia, não podemos obrigar quem está bem a vir e a deixar o seu bem estar. Foi uma suposição, apenas. E um esquecimento, por amor. Também esqueci em que estreito foi que, aqui sem nós, seria entre rochedos, terminei o Estágio de Advocacia e suspendi funções. Chorei, discuti muito com o meu pai e a minha mãe, a certa altura só com o meu pai, ele sem entender foi anuindo à minha anulação desse caminho profissional, eu repetia que não queria mais, disse que cumprira tudo, que mais seria demais. Ele, magoado, mas foi-me olhando com carinho. Eu, esgotada, precisava olhar um horizonte de sol largo e quente. Tomei a decisão de ir estudar o meu último ano do curso de História de Arte em Barcelona, ao mesmo tempo que decidia um futuro incerto cheio de esperança decidia também um futuro certo cheio de dificuldades, optei pelo ramo educativo de História de Arte, seria professora, talvez… talvez… talvez… talvez… tal vez…

Vi filmes, muitos filmes, eu e os meus filmes e os dos outros, no meio de uma quantas pessoas, o Porto ainda tinha muitas salas de cinema, vi o Lost HighWay no Pedro Cem.

Em 1997 eu sentia que era eu só mais eu. Eu aprendia, demoradamente, que na paixão somos todos feitos de incompetências sem sabedoria de ninguém.

Se fossem 1997 vezes algumas seriam tal qual, outras às vezes e outras coisa e tal.

Sem ser um ano fácil de lembrar é um ano determinante na lembrança, do que eu era e do que eu sou, hoje. Aliás, repito o número por espanto númerico-alfabético neste processo de rememorização. Grata Júlia de Carvalho Hansen por bater à porta desse espanto.


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José Muniz Jr.

O nono ano ainda se chamava oitava série, e acho que a coisa toda já se chamava ensino fundamental, mas de fundamental só tinha mesmo a professora Marlene, de matemática.

Eu escrevia poemas e fazia teatro. Foi por isso que, em 1997, aceitei encarnar Mickey Mouse numa festa no Dia das Crianças (eu, que ainda era uma!). Mas as crianças nem queriam saber de Mickey: queriam era puxar o meu rabo de rato, pisar no meu pé de rato e saber quem era a pessoa sob a pelúcia de rato.

"Mickey, você é homem, mulher ou viado?" (Achei a pergunta difícil naquela época.)

"Mickey, tem mais bala aí?" (Eu não podia responder, não sabia fazer voz de Mickey; fazia "não" com o dedo indicador, embora o desejo fosse dizer com o dedo médio.)

Com os cinquenta reais (uma fortuna!) que ganhei interpretando Mickey, comprei meu primeiro livro. Era a "Antologia poética" do Carlos Drummond de Andrade. Custou dezessete reais. Juro que não lembro o que fiz com o restante do dinheiro, mas suponho que tenha gastado em sanduíches e em vinho vagabundo pra beber sentado no meio-fio da praça. Nada aos pobres.

Gastei alguns meses lendo e relendo o prefácio do Drummond para o jovem leitor. Era a parte que eu entendia. Quando segui adiante na leitura, passei a não entender mais nada. Mas os poemas me faziam chorar e perder o fôlego. Chorar e perder o fôlego foram coisas que aprendi com Drummond; pratiquei bastante nos anos seguintes.

Mas aí já entramos em 1998, 1999, 2010, 2011, quem sabe? Então, registre-se apenas que em 1997 o nono ano ainda se chamava oitava série.

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José Muniz Jr.

Daniel Ribão

Em 1997 eu tocava guitarra e tinha 17 anos.
Tinha uma banda que se chamava Satan Klaus e uma chamada Avatar (Ainda não havia o filme, e nem a internet existia muito, por isso acho curioso lembrar do nome).
Depois dos ensaios em um estúdio tosco, saíamos de camisas pretas ao sol, comprávamos cachaça ruim e suco de abacaxi e bebíamos sentados na calçada.
Tinha um grupo de amigos que se reunia sempre para tomar cerveja, ouvir metal e discutir os grandes problemas da humanidade.
Todos os dias à tarde eu tomava, com pelo menos dois amigos, uma garrafa de vinho chapinha e comia um brigadeirão da padaria.
Às vezes a gente assistia ao Monty Python bêbados e morríamos de rir.
Eu bebia muito e tinha muito tempo à toa. Lembro que a embriaguez e a amizade eram excelentes comparsas.
Nas conversas sobre o universo, eu comecei defendendo ferrenhamente um ponto de vista "místico" mas acabei a temporada filosófica no time dos céticos. Apesar disso, não acho que mudei muito de ideia.

Além do metal, eu ia começando a conhecer outras coisas. Lembro-me do Milton Nascimento:
"Volver a los 17" era um clássico na altura, mas era mais porque coincidia com minha idade.
Outro dia ouvi de novo a canção na mesma voz, mas a sensação foi, apesar de muito forte, completamente outra.

João Adolfo

Em fevereiro de 1997, voltei da França. Estive lá acho que desde agosto ou setembro de 1996 convidado pra fazer um seminário na École des Hautes Études sobre a poesia atribuída ao seiscentista Gregório de Matos e Guerra. Eu o fiz etc. Era inverno. O céu muito baixo, de chumbo, cinza, opressivo. E o frio, o frio frio, desgraçadamente frio. Paris não era uma festa. Quando voltei para o Brasil, começo de fevereiro de 1997, o avião parou no Rio antes de seguir para São Paulo. Quando abriram as portas, o verão entrou com seus 40 graus, e aquele cheiro de Mata Atlântica, úmido e verde e denso e quente, como uma surpresa, um tapa de boas vindas. Me reconheci, disse comigo: "Brasil!". E me senti em casa, no mato. Não sou nacionalista, gostaria de ser apátrida e ter nascido na fronteira do Paraguai com a Finlândia (Lévi Strauss dizia que para ele o Brasil era um perfume queimado. Para mim, é o perfume vivo da Mata Atlântica). Gosto muito do Brasil por causa dele. Não. Acho que só gosto é dele, do cheiro quente de mato úmido onde agora uma orquídea acaba de abrir silenciosa e profunda, sem ninguém saber. O Brasil é outra coisa. O Brasil é melhor esquecê-lo. É o que me lembro agora de 1997.

Valentina

Então, sou Valentina...

Em 1997 eu era quase feliz!
Estudava. Trabalhava. Pensava que era Eu!
1997 passou por mim como grande pênis lubrificado...
Entrou, me iluminou e saiu rapidamente... Deixou muito prazer e audácia!
Foi o ano que me abriu as portas para o inferno de 1998...
Ahhhh que saudade de 97!!
Sem dores, medos ou culpas...
Ano de muita intensidade, alegria! Paixão!
Como era bom saber que todo o prazer do mundo cabia entre minha pernas...
Ahhhhhhh Eu era a dona da minha indecência rsrsrs
E como era bom...
No 31 de outubro de 1997 começou a sina de um ano que nunca termina...
Amanheci em abril de 1998 retalhada...
Dilacerada e sem nome para dar a essa dor...
Não há próximos passos...só um longo rastejar...
Como diria o jacaré de esgoto que mastiga humanos nas horas vagas...
Minha barriga esvaziada...
Meu sonho apagado e uma névoa embaçando o horizonte!
Veio o fim da jornada... alucinações olfativas, viagens astrais, lágrimas e uma formatura!!
A volta por sobre as pegadas que deixei muito tempo antes...
Chegar à terra natal...
Sete corpos me esperavam na grande água...
Um olho tatuado na nuca...para não esquecer o passado e para me proteger da guilhotina no futuro!!!

BRUXA!!

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domingo, 20 de fevereiro de 2011

Sabina Anzuategui

1997, para Julia

(texto pouco revisado)

Em 1997 eu não estava mais grávida, fui expulsa do apartamento de uma estudante de enfermagem apaixonada por um cara casado e com AIDS, aluguei uma kitchinete para dividir com minha amiga coreana, trabalhava seis horas por dia revisando a digitação de portarias e leis e decretos sobre comércio exterior, escrevi muito no primeiro semestre, depois as idéias secaram e escrevi menos.

Em junho mandei alguns contos para um ex-professor e editor, Jiro Takahashi. Era um último fio de esperança, depois de ser ignorada num concurso da USP, e ouvir de uma professora amiga que "simplesmente não entendia o propósito" deles.

Algumas semanas depois, chegou uma carta de quatro páginas que talvez tenha mudado minha vida.

Ou, pelo menos, me deu ânimo para sobreviver uns 4 anos.

Alguns trechos de seu texto claro:

"De um modo bem abrangente, genérico, acho que você propõe - pode até ser sem querer - um tipo de texto radicalmente feminino jovem. (...) Por outro lado, penso que essa perspectiva em que seus contos avançam dificilmente vai fazer você ganhar concursos literários mais ou menos convencionais (embora eu espere estar errado quanto a isso)."

DÚVIDA: Será que eu havia mencionado o concurso da USP? A frase é uma resposta ou uma premonição?

Depois, sobre a primeira versão de O meu conto feminista:

"Incrível este texto do ponto de vista de sondagem e de expressão de uma alma. A gente acompanha uma viagem dentro de um ser que procura reagir diante de uma situação externa que o afeta profundamente. O último parágrafo daria inveja a muitas escritoras."

Lembro de escrever esse conto com extrema dificuldade, errando muito a coerência dos tempos verbais, depois de quase dois anos sem escrever nada de literatura.

Era diretamente inspirado em Lo que queda enterrado, de Carmen Martín Gaite, que eu havia lido num curso de Literatura Espanhola na FFLCH (de uma professora ótima, cujo nome esqueci).

Tentei encontrar nos meus arquivos a primeira versão do conto. Reescrevi várias vezes o último parágrafo, que nunca me parecia bom. Finalmente ele apareceu em Calcinha no varal assim:

"Mas não fiz o conto, não nesse dia. Levou muito mais tempo pra eu entender o que havia acontecido."

Até onde posso confiar em minha própria organização, a primeira versão dizia:

"Porque eu tinha que me libertar dele, por mais que doesse. O amor dele acabara e o meu, sozinho, só servia para me ferir. Me veio uma idéia, não lembro se foi ali, parada na janela, ou se foi depois quando fui ao banheiro e vi que a menstruação tinha descido: uma vontade de me reerguer, ser fria, forte, e escrever um conto feminista como as primeiras mulheres que lutaram sozinhas. Eu tive essa idéia e sentei de novo à máquina de escrever.

Mas não fiz o conto, não nesse dia. Demorou muito mais tempo pra eu entender: o que eu tinha feito da minha alma, eu mesma tinha feito."

Hoje acho muito estranho que eu tenha escrito "minha alma". Também me parece improvável que alguém elogiasse esse último parágrafo.

De todo modo (não percebi na época) a idéia de "me reerguer, ser fria, forte" é praticamente um resumo do último parágrafo de Perto do coração selvagem
 
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