terça-feira, 21 de junho de 2011

Sérgio Alcides

Júlia, cara,

se houve um ano crucial para mim, foi 1997. Nesse ano (que fui ver chegar na praia de Copacabana) saí do Rio, onde eu tinha nascido, e nunca mais voltei para ficar. Fui para Mariana, no interior de Minas Gerais, e me tornei professor. Nunca tinha dado uma aula antes. Peguei de saída três turmas, lotadas de gente não muito mais nova do que eu, gente ótima e acolhedora. Inclusive o Pacapau, meu primeiro aluno doido, do curso noturno, que tinha ataques de perguntação incessante e aleatória, e me cumprimentava com uma saudação aborígene: Hau!
Nesse ano deu muita jaboticaba, de doce memória. Era uma vida boa, envolvida em lençóis do melhor algodão do passado. Eu ainda tinha meu heróico Fusca 1977, que já estava nas últimas, mas servia para me levar até Ouro Preto em históricas peregrinações, para ver aquela lua cheia incomparável. LDZ (ex-OZ) 0005. Azul, sempre sujo, porém sempre celeste. Ainda mais agora, quando já não existe e talvez até esteja limpinho lá dentro de sua garagem-inexistência. Que amigo fiel! Reclamava muito dos maus-tratos, mas nunca me deixou a pé.
O prefeito da cidade era um gângster que tinha sido condenado por crime de corrupção. Durante o dia, despachava na Prefeitura; à noite, voltava para sua horrenda mansão verde-musgo, em prisão domiciliar. Era o maioral daqueles penhascos.
Eu morava numa casinha térrea, na subida para a igreja do Rosário. Rua Monsenhor Horta. Minha choça de pastor inárcade. Ficava para lá da belíssima Ponte Alphonsus de Guimarães, feita de grossas e escuras toras de madeira, por cima do “pátrio ribeirão” do querido Cláudio Manuel da Costa. Turvo e feio... Eu passava por ali todo dia, dizendo para mim mesmo:
E o sino canta em lúgubres responsos:
Ponte Alphonsus! Ponte Alphonsus!”
Num dia de faxineira, saí para ir dar aula sem levar a chave. Quando voltei, ela (nome?) já tinha ido embora; fiquei na rua. O Mágico de OZ me levou até a casa dela, num bairro distante, um morro pontudo que o prefeito pelou e cobriu de casebres sem água corrente nem nada. Encontrei lá o marido dela, que não estava tão bêbado que não pudesse informar que ela devia estar na casa dos pais, num bairro próximo. Eu nunca saberia achar o caminho – e ele então mandou a criançada ir comigo. Festa! Iam andar de carro! Meu velho Fusca para eles era uma Ferrari, e o ruído irritante de mil parafusos frouxos era uma sinfonia, que os cinco pequenos e pequenas acompanhavam cantando. Quinze minutos depois, em outra parte da periferia da periferia da periferia, chegamos à casa dos pais da faxineira. Fui recebido pelo ancião, com boa (e longa) prosa. Saleta apertadíssima, com a porta da frente sempre aberta, e muita escuridão lá para dentro. No ar, um cheiro de TV nova em folha misturado com terra úmida, porque não havia soalho. A faxineira não estava, talvez chegasse mais tarde. Quando apareceu, com a chave da minha casa, já tinha anoitecido. ‘Perdi, ganhei meu dia’ – pensei, ao contrário do verso de Drummond.
‘Ganhei, perdi meu ano’. Estávamos em pleno regime FHC. Instituição do cinismo como padrão ético oficial. Perseguição à universidade pública. Proliferação nacional de shoppings e deliveries e think-tanks impensáveis. Extirpação violenta da menor sombra de espírito público. Privatização a preço de banana das jóias da tia velha. Vendagem sem precedentes de tintura loura para o desperdício das moreninhas. Atônita busca de um eufemismo em inglês para “bandalheira” na política. Exterior pop glamurizando a banda conformista juvenilóide. Enfim, era a alvorada neoliberal do nosso tempo. Tinha sido inventado um novo tipo de fascismo.
Eu ia fazer trinta anos, e não avistava nenhuma esperança no horizonte. Tinha terminado de me tornar adulto no tempo dos adolescentes retardados, cujo projeto de vida era (e ainda é) basicamente só tirar a bermuda quando for imprescindível vestir a fralda geriátrica.
No fim do ano, com minhas dívidas reais e simbólicas, eu já estava ligado a São Paulo, para onde fui depois. O coração dos tempos, capital mundial do PSDB, metrópole também dos resistentes, das hipóteses de civilização mal-ajambradas que ainda eram indigestas para o canibalismo do sistema financeiro e abriam algumas brechas para quem quisesse respirar. Eu queria muito.
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4 comentários:

  1. Que lindo ler isso professor...
    Nos idos de 1998 o moço Sergio Alcides me apresentou Italo calvino!!!
    Numa aula da longínqua UEPG.
    Valeu muito.
    Obrigada.

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  2. Kristhiane, saudades de vc, dos seus colegas, do Gadini e de outros profs., do La Taverne e de várias outras coisas...
    Abraços, Sérgio.

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sejamos docemente biográficos