segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Victor Heringer

PERDER OS DENTES DA FRENTE EM DOIS ATOS

PRIMEIRO

B.: Bom dia.
V.: Acordei atento. Sabe atento?
B.: Sei atento. Você olha para fotos de crianças na revista de domingo e as vê adultas, depois velhas, depois vê os filhos, os netos e todas as gerações de filhos e netos.
V.: Isso.
B.: Fuma que passa.

B.: Agora você está deprimido?
V.: Agora sim. É o cigarro.
B.: Aqui, come esta maçã. Trouxe umas fotos suas. Você criança.
V.: Não vejo nada.
B.: Espera um pouco.
(Pausa)
B.: Está lembrado?
V.: Não.
B.: Olha para a foto.
V.: Não.

B.: "3 de abril de 1997".
V.: Que tem?
B.: O dia da foto. Escrito no verso. Está lembrado?
V.: Minha boca sangrando.
B.: Sua boca sangrando, o que mais?
V.: Meu irmão socou minha boca.
B.: Os dois dentes da frente caíram à força.
V.: Nem estavam moles.
B.: Um menino tardio. Come esta maçã.
(Pausa)
V.: Um garoto tardio.
B.: O que mais?
V.: Jogamos futebol no quintal. Isso não aparece na foto.
B.: As traves dos gols eram quatro árvores. Duas suas, duas do seu irmão.
V.: As árvores dele não cresceram tanto. Pouco sol.
B.: O soco.
V.: O soco foi antes da foto.
B.: As árvores ainda estão lá?
V.: Lá onde?

SEGUNDO

V.: Tinha um canário.
B.: Baltazar, Belchior. Um dos três reis magos.
V.: O gato comeu o canário.
B.: Rarrarrá o gato comeu o canário?
V.: Comeu o canário. Um gato que não era nosso.
B.: Abaixo a propriedade.
V.: Abaixo.
B.: Você já está bêbado? Como era o nome do terceiro rei mago?
V.: Já. Aí fui pintar, eu era pintor, e derrubei tinta no chão. Tinta preta. No chão do quintal, a parte de cimento do chão do quintal. Ficou igual o Elvis Presley.
B.: Detesto o Elvis Presley.
V.: Todo mundo detesta. Está lá até o hoje o Elvis. Com topete.
B.: Lá onde?
V.: Rarrá.
B.: Quer ver outra foto?
V.: Você consegue ver os meus filhos, meus tataranetos?
B.: Sua foto do passaporte. 1997. Para onde foi?
V.: Não lembro.
B.: Você já tinha medo de matar alguém?
V.: Já.
B.: Já quebrou o braço?
V.: Nunca quebrei nenhum osso. Já lia Dostoievski.
B.: Mentira.
V.: Mentira.
B.: Animal?
V.: Antílope.
B.: Gato não?

V.: Não é insuportável?
B.: É.
(Pausa)
V.: Lembrar.
B.: É.
V.: Não me lembro de muita coisa.
B.: Cor favorita?
V.: Vermelho.
B.: E o backstreetboy favorito?
V.: O bonzinho.
B.: Rarrá.

V.: E o Vasco?
B.: Ah, pelo amor de Deus.
V.: Deus não?
B.: Nem você. Nem você?
V.: Deus claríssimo que nanão.
B.: Um livro?
V.: Dostoievski.
B.: Gosta de alguma menina da sua sala?
V.: Claro que não, para com isso.
B.: Gosta sim.
V.: Gosto não.
B.: Gosta si-im.
V.: Quer perder os dentes?
(Pausa)
B.: Por favor, come esta maçã.


- -
Victor Heringer

Nenhum comentário:

Postar um comentário

sejamos docemente biográficos