terça-feira, 21 de junho de 2011

Ricardo Reis

Minha memória costuma não se apegar à números. De forma que a precisão das épocas nem sempre obedecem aos anos. Pelo menos é assim que me parece. Quando falou de 1997 eu não achei nas gavetas as cartas, as imagens e as palavras que preencheram esse espaço. Foi necessário contar os anos, fazer aproximações e inventar um pouco.

(...)

Acho que 1997 foi o ano que vim pra São Paulo, mais especificamente, São Caetano, a cidade que morei por mais tempo até hoje, dos 10 aos 18 anos. Era a oitava vez que eu mudava de cidade. Se estou certo, foi um ano que influenciou muitas coisas em minha vida, evidenciaram-se as faltas, as lacunas, os medos e as incapacidades.

Vinha de Minas Gerais, do interior de Minas, duma cidade pacata, de ruas de terra e de alguns amigos. Até ali, até aquele momento nunca havia pensado sobre ser. Criança que era, apenas existia. O viver se pautava pelo prazer e pela vontade. Os costumes e modos obviamente já estavam engendrados em mim, como em qualquer um, imagino eu. Mas eu não pensava nisso, tudo se integrava, de uma maneira ou de outra, parecia que cada um era o que era, cada um era pro que nascia, não tinha porque questionar isso. Tinha?

Observar de longe as crianças brincando nas festas enquanto eu permanecia sentado nos pés de minha mãe, não era um problema. Meu silêncio não me incomodava. Passar horas fazendo guerras interestelares entre Comandos em Ação e monstros desenhados em folhas sulfites era cotidiano. O pedestal que sustentava minhas paixões não era lá tão alto, nem tinha barreiras assim, tão intransponíveis.

O choque, porém, não tardava. Caí numa cidade provinciana e um tanto cerceada, pra não dizer reacionária, pelo menos naquele contexto que eu habitava.

(...)

Tive algumas paixões na infância, alguns amores. Amores de um menino qualquer, que se contentava em alimentar essas relações pela observação. O silêncio bastava. Afinal de contas é assim que uma criança sente, com os olhos. A eloquência do corpo era inexistente, ou subjetiva demais. Pelo menos era assim pra mim.

(se bem que em alguns momentos eu já tinha observado meu corpo, já presenciara alguns sentires e alguns prazeres, mas que não cabem aqui, não agora).

(...)

Caí numa escola particular, de costumes peculiares. Violenta inclusive (pra meu olhar da época, ou melhor, pra meu olhar de mais velho olhando pra época).
Tenho a impressão que tudo se pautava pela imagem e pela quantidade.

As crianças logo perceberam que havia chegado um menino novo, vindo de Minas, tímido que só e muito, muito mais criança que elas. Outra coisa que só vim perceber depois.

Acho que prezava as diferenças. Meu sotaque não me dava vergonha, e nem achava ruim que os hábitos e trejeitos de um não fossem como os de outro. Não me pesou nada ignorar todos os esportes que os meninos gostavam, passar batido pelo futebol e ir fazer dança, coisa de viado praquele pessoal todo (até basquete, pra eles era coisa de bicha).

Tinha um amigo muito querido nessa época, convivíamos intensamente. Mas aos olhos daquele bando de moleques, éramos namorados.

Talvez uma complicação a mais que viria pesar sobre minha imagem era a necessidade de espaço. De um espaço pequeno e fechado. Tinha medo, assim como tenho ainda, de sair de lá. Alcançar o outro era sempre uma baita distância, digo isso hoje, claro, na época o nome que eu dava era timidez, ou coisa parecida. Naquela escola as novidades precisavam ser consumidas, do tênis da moda, ao menino novo, vindo do interior.

Não sabia como reagir àquilo tudo, ninguém observava o tempo, então era difícil conseguir lidar com aquele furor todo, das crianças que começavam a descobrir o calor. Eu tinha medo, sentia que essas trocas não eram assim qualquer coisa, eram um qualquer coisa com alguma outra coisa a mais. Pra mim, até então tudo deveria acontecer conforme a minha vontade, até que vi que as coisas não eram bem assim.

Fugi muitas vezes. Era o que me cabia, era o que meu repertório me permitia. E não tinha preparo algum para atuar nisso, eu precisava ficar na minha casca um pouquinho mais. Quem não vê tempo, raramente vê espaço, assim, me atropelaram. Vi que teria que enfrentar aquilo, quisesse ou não.

Meu primeiro beijo foi à força, com um esquadrão de umas dez crianças observando e forçando a barra, na escada do terceiro andar, na frente da sala de inglês.

Dessa vez não consegui fugir.

(...)

Por ser um ano de chegada, as imagens pré-estabelecidas não estavam ainda tão nítidas e os preconceitos ainda não estavam tão severos. Foi um ano bom lá pelas tantas, tinha meus amigos, meu pequeno grupo de bons amigos, me orgulhava por dançar; tinha minha pasta de desenhos e inventava minhas paixões. Nessa época, a invenção se chamava Nara, era da manhã. Menina calada, clara e de olhos azuis.

Não despertei o menor interesse nela, apesar de tirá-la duas vezes pra dançar nessas festas de garagem. Até hoje não sei da onde veio a coragem.

Mesmo assim, ela pairou um pouco sobre meu peito, sobre meus  meus olhos, mas depois mudou de nome, se chamou Samira, depois, sei lá o quê.

Às vezes acho que amava a distância, me apaixonava por quem não alcançava. Pra não correr, nunca, o risco de não conseguir alcançar quem está perto. Desde pequeno fico buscando o ideal. O pior é que nunca acreditei em Papai Noel, nem em Deus, mas na perfeição sim. Acho que por medo de não conseguir habitar um lugar que não existia, preferia me recolher e observar o mundo pensando em como dialogar com tudo, ao invés de, simplesmente, lançar a primeira palavra:

-Oi.

E assim foi 1997,  um ano que pela primera vez meu existir se chocou com o existir alheio. Um ano marcado pela dança, pelas brincadeiras, desenhos, amores, Fabrícios, uns outros nomes e alguns insultos.

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