Em 1997 eu fiz trinta anos. A Bíblia nos dá setenta, depois dos quais tudo é “cansaço e chateação”; eu estava ainda aquém da metade, mas prestei atenção na efeméride. Comprei um disco chamado OK Computer e um livro chamado Fragmentos de um discurso amoroso – não tenho mais nenhum dos dois. Perdi cem discos de vinil para uma praga de cupins. Acordei numa sexta-feira ainda bêbado do uísque da quinta e vomitei no banheiro do trabalho. Uma puta pernambucana cantou I like Chopin para mim em japonês. Comprei uma máquina de lavar e uma televisão estéreo – ainda tenho as duas (a televisão está quebrada). Não tinha telefone nem internet, e meu computador era um 486 DX4 ou algo assim. O Palmeiras não ganhou nada. Perdi um casal de amigos. De setembro em diante, falei mais inglês e castelhano do que português, e virei don Orlando para um bando de chilenos. Em outubro, um filipino carente telefonou para a minha senhoria, que passou a me achar um sujeito importante porque me ouviu falando what?! Conheci gente que veio a me detestar e depois se arrependeu. Eu tinha um cachorro vira-latas que se machucou me defendendo de um pastor alemão. Viajei a Belém do Pará e vi um retrato de Karl Marx num shopping center de lá. Minha filha fez dois anos. Eu lia jornais. Eu tinha um walkman. Comprei camisas que ainda tenho. Eu vinha para cá, tempo e lugar; mas sem saber, como não sei para onde, tempo e lugar, estou indo agora.
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sejamos docemente biográficos