quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Priscila Amoni

lembro outro dia que não lembrava de nada. você perguntou, e só se dava o embaralho dos planos cortados e montados na hora, alguns até em seu incólume fade out, nascido do não deter alguma ocasião provavelmente tão efémera, tão infantil quanto eu em mil novecentos e noventa e sete 
sou agora, portanto, eu, a moviola, uma cadeira desconfortável, pilhas de rolos desenrolados que vêm do teto, das paredes, do chão atrás de mim, de mim. minha memória e eu.
preparei a sala escura e esperei um amanhecer qualquer que me trouxesse os noventa, no meio do segundo meado.
essa condição humana de montadora do passado faz pensar no futuro. que eu, naquele ano, não tinha a menor ideia de onde estaria em 2012. nunca sabemos o que estaremos fazendo daqui a 15 anos.
não estaria eu refletindo sobre isso, parada no sinal de pedestre, numa avenida atlântica de balneário camboriú em 95. os azuis ao fundo, a vontade de atravessar a rua ou nenhum sentimento por isso, menos que isso, eu a olhar o mar apenas.
Tão efémero quanto eu foi aquela atlantica ser invadida por um sem número de motoqueiros harley davidson e suas altas colunas, momentâneamente entre mim e o mar. todos cantavam e sentiam uma música - que depois eu saberia ser wonderwall, do oasis.
em 97, no entanto, nada de futuro.
em 97 conheci meu pai biológico.
um grande e branco passe-partout dentro de um cubo branco.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Marion Hesser


Na 7ª série. É a primeira coisa que eu sei. Os de 1984 fizémos o pré em 90 então até a 8ª foi sempre emparelhado.

Deste ano me lembro sobretudo do Jairo.

Ele foi meu professor de português e era o marido da Rosa. O Jairo era um cara legal. Ele dizia que era meu "fon" em vez de "fã" porque meu nome terminava com ‐on e não com ‐ã. Essas coisas.

No segundo semestre letivo tivemos que preparar canções da música brasileira. Escolhíamos, imprimíamos a letra numa folha de papel vegetal, relacionávamos uma imagem por detrás do papel e cantávamos. Can tá va mos.

Foi a primeira e a única vez que eu cantei em público.

A música que escolhi foi uma que escutei no rádio no carro com minha mãe. Se chamava "Estrela" e na rua da loja do meu pai eu comprei o disco, o "Quanta": todo rosa e estranho para mim. Aquela música era uma música de Gil e eu ainda não conhecia Gil.


Quando vim escrever este "onde estará" imediatamente cacei o disco. Aqui em casa, intacto dentro do pó. Júlia, você não sabe o tesouro que eu encontrei: o encarte do "Quanta" é um tesouro. Daí
que é ele o que eu quero deixar, ele o que quero mostrar para o ano de 1997, em 10 esforços de escaner:



































quinta-feira, 22 de março de 2012

Antônio LaCarne

Selvagem, 1997, o coração preso à dependência do que no futuro teria nome, cara de monstro, e uma pausa no silêncio. A manipulação do sono e dos sonhos. Nunca mais eu estaria ausente. A solução para os problemas surgiria com doses homeopáticas de maturidade, e os 14 anos de idade em questão, serviriam para uma prova ao sexo em contraste com tanta inocência proveniente das ruas calmas e ensolaradas do interior: uma cidade propícia e à deriva, as portas fechadas, uma preparação para tudo e nada.

Sim, em um ano a mudança para a grande cidade. 1998 quando 1997 é a questão, é o que neste instante importa, como uma lembrança em homenagem ao passado, de volta ao que eu era: flor desabrochando no segredo do casarão plantado por longos corredores, idas ao colégio de freiras, lágrimas aos deuses e santas.

Mas por algum engano ou curiosidade, mantive os olhos abertos para o possível primeiro choque jamais relatado em textos. Se não me falha a memória, titia recém descoberta me levou para sua casa de altos muros, riqueza que jamais me saltaria aos olhos, pois tudo o que eu imaginava seria a aceitação de quem ali perto deveria segurar a minha mão e provar que todo o tempo perdido me fortaleceria na guerra. Guerra que desvendei numa atitude de quem só tem um rosto, duas mãos.

Houve o tempo previsível de sol, praia, ritmos frenéticos do meu silêncio até então lacrado num envelope. Escrevi uma carta onde me ditaram cada palavra, dramas, dores, infelicidade. Era um jogo para atrair a piedade de pai e megera. Mas depois do falso alarde, voltei ao centro de tudo, ao centro de mim, mantendo calmo o mar de uns olhos que poderiam ter visto além dos campos e serras e cavernas. Sozinho, dentro do ônibus, eu observava a nebulosidade silenciosa da montanha tão verde, a estrada tão perigosa, meu senso de segurança tão aguçado como se toda história fosse uma qualidade dramática da família que me oferecia ouro, vastidão de gestos, e cumplicidade, como um cronograma de bons modos, boas sortes, bons mistérios que a vida proporciona. E em 2012 você redescobre os porquês das idas e vindas. 1997 foi selvageria disfarçada de força na adolescência.
 
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sábado, 17 de março de 2012

Roberta Ferraz

1997,

Naquele documento só constava assim: 1997, desidratações. Há obviamente uma sequência de coisas intencionalmente deixadas para a inexistência tão crua deste ano. Precisei intercalar 1997 com outros dígitos, marolas de outros anos, e a memória derreteu-se para o magenta, para o abalone: é este anel em minhas mãos. Começo a chamá-lo: neste anel a concha já revelara a moça indefesa, viria depois a bruxa para só então, ser, antropomórfico como um minotauro e aí pairar desconhecido, com as cracas, num fundo de um rio. Venus Urânia, Venus Anadiomena: um pêndulo de hipnoses, é certo, aquele caminho: deixar os cabelos crescerem a partir daí. Sem escapatória. Abaixo da cintura. Cinturão de Órion, cravejado, nas mãos.

Toda história é onírica depois de 1997. É o que os 16 anos, quando são excessos, legam. O corpo-ardor, a corça-de-brumas, as cidades-surrealistas, o amor como uma primeira identidade, primeira caricatura, a intimidade da encruzilhada. Caminho pelos campos de trigo? Chamo os lobos da estepe? Moro numa casa de vidro? Quantos peixes no aquário? Estou perto do coração selvagem? Noites na taverna. Noites na taverna. Você acredita na metempsicose? A disposição elástica do corpo contagiava todas as palavras. As palavras estavam em todos os corpos. Os corvos ao pé da cama. Mapas astrais numa fita cassete, indo e vindo, através do futuro, ainda claro e estrangeiro. Calor obsessivo em Ribeirão Preto, e tantos manuais de trigonometria ou guloseimas alquímicas de eletricidade, nunca entendidos, eu ficava à janela. Quando, o azul-e-branco? Cavalgando demais, Toronto, Toronto o alazão das minhas coxas, nu e potro sob a minha velocidade. Na casa, aquela que era eu seguia abrindo janelas. O equilíbrio exato dos segredos. Na casa, faziam a mesma festa, quando do outro lado nenhum olhar me vigiava, o jardim. Cartas e fitas gravadas, música o dia inteiro. How beautiful could a being be? Rapte-me camaleoa. Adapte-me. Adolescente ruído que já era encruzilhada sem dedos. Disse três vezes. O ritual espontâneo da palavra. Em 1997 começa-se a dizer. Tudo tão a grito, o carmim da cruz, para lá, para cá? Vertigem alcoólica, escoriações. A próxima identidade.

Toronto morreria dali a pouco. Uma amiga que não vê, todos os dias. Literatura. Excitação pela busca da comida. Nas brumas leves das manhãs que vêm de dentro. Disposição elástica do corpo: frenesi e feriado. Patins pela ladeira da avenida do gás. Nó de rosa, dar a volta no mundo, com o berimbau e a Bahia. Inocências como jacintos. Duas daquelas flores no asfalto. Explodindo a Avenida Portugal. Palíndromos: moradas. Repetições, repetições – muda o registro (é o aro que eu tento impôr, daqui de fora). Ah, que ilusão! Uma fita cassete que me leva de 1997 a 2009 para então se afundar num leito de rio, de palavras, de silenciosas frestas. Um orelhão numa praça vazia da cidade mais vazia do interior. A repulsa ao jardim, o soro de hóstias, o cinema que arregaça fugas. O sono: ninguém teria culpa. Mas quem saberia disso antes de 2010. Antes de 2009. Estivemos quantos anos neste banho de água parada? E o sol quarando nossas roupas no varal. Afasto o calor. Pela memória. Não me admira que 1997 queira dizer-se como carta póstuma, (desculpe, não há mais fotografias) queimada ao acaso junto com outros papeis desimportantes. Este anel em minhas mãos, as minhas mãos no fundo de um rio. Magenta-verde, arder de um rosa vívido, quantidade elétrica dos sonhos e dos esquecimentos.

Agora já não me resta nenhum orgulho, só o sabor de me saber sido intensamente jovem contigo. (apêndice)

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segunda-feira, 5 de março de 2012

Glaura Cardoso Vale

em 1997, já fazia teatro
estreava uma peça mítica do Nelson Rodrigues, Senhora dos Afogados
com mais 14 universitários
fazíamos parte de um grupo dirigido por uma atriz e diretora já reconhecida em Belo Horizonte
hoje vive em São Paulo
sala lotada nos três dias

era momento de euforia juvenil
em que não se sabia ao certo no que ia dar tudo aquilo
muitas dúvidas como em qualquer fase da vida
sempre me orientei por caminhos incertos
eu tinha 23 anos e um desejo enorme de escrever
e alguma coisa, naquele tempo, estava começando a dar sinais de que valia a pena correr o risco
não sabia se seria romance, dramaturgia ou poesia
também o cinema, escrever para o cinema
ah! como passei a amar ainda mais o cinema no ano de 1997
começava minha paixão por Bergman
os relógios sem ponteiros,
os fantasmas assombrando a casa

depois veio Truffaut, Buñuel, Fellini, Fassbinder

foi o teatro que primeiro me mostrou o cinema
e eu devorava tudo, esgotava o assunto
procurava por eles nas prateleiras de arte até chegar em Hitchcock
o velhinho que perturbou minha infância
nas noites de Corujão

assistia Hitchcock
para capturar os gestos dos atores
os sorrisos, o jeito de caminharem, de se posicionarem
o silêncio
o diretor a acender um charuto
visto de uma janela
citado por Chris Marker em um de seus filmes, Sans Soleil:
uma mulher admirando um quadro,
o tempo espiralar,
um corpo que cai


lia tudo que a diretora mencionava
e não me admirava em ter na estante de casa
Goethe, Dante, Dostoiévski
sem ainda ter lido
foi o teatro também que me fez apreciar a construção das personagens da literatura
a perceber e anotar suas características
bem ali, na estante de casa,
estavam os livros
mesmo que improvisadamente
e comidos por traças

sem falar no canto,
sem falar na pintura

em 1997,
talvez quisesse ser atriz, diretora, compositora, além de escritora
talvez por isso
por todas as possibilidades
e pela impossibilidade de tudo abraçar e compreender
tenha me tornado poeta

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Glaura Cardoso Vale

sexta-feira, 2 de março de 2012

Wanessa Queiroz

ano bonito e cheio de descobertas; creio que a maior dentre elas foi de ser vista como um pequeno ‘’gênio’’ pela minha vizinha – que era professora. uma professora muito dedicada e amiga, que não podia ter filhos e por isso tinha um amor incondicional por todas as crianças do bairro, inclusive seria de bom tom falar que ela foi a primeira professora de todas elas. certo dia ela perguntou para minha mãe se podia começar a me ensinar o alfabeto. ela sabia (de alguma forma extremamente bizarra, pois devia ficar me observando quando eu saía – e eu nunca saía) que eu tinha potencial para aprender e que eu tinha uma curiosidade incomum por ficar folheando certos livros e jornais da época, enfim, por letras. eu tinha apenas 4 anos e tive o consentimento dos meus pais para ter aulinhas de alfabetização todas as manhãs durante uma hora com a professora maria, que pouco tempo depois entrou pra família e é conhecida até hoje como tia maria. enfim, tive avanços assustadores, consigo lembrar de pouquíssimas coisas agora, mas nunca esqueço de um momento em especial na qual ela me mostrava um livro com letras grandes e sem nenhuma figura e dizia pra eu ler o que estava escrito numa determinada página, e que eu teria que escolher a página e o texto a ser lido. o livro era enorme e todo em preto e branco, parecia muito desinteressante à primeira vista, mas consegui encontrar um textinho mediano e lembro até hoje da primeira palavra que vinha no título com letras maiúsculas e das risadas em conjunto que vieram depois: MARIA; essa mulher que durante quase seis meses me fazia uma criança feliz, só por me mostrar o que os outros não eram capaz de ver em mim. eu, uma criança que não tinha amigos, apesar de viver rodeada de crianças. uma criança que saía com um caderninho amarelo com bolinhas pretas na capa em direção à casa ao lado pra aprender a ler e a escrever como se fosse participar de uma competição de quem come mais jujubas em menos tempo. uma criança que no ano seguinte fez um teste pra provar que a mãe não estava mentindo, mas ela tem só 5 anos, dona Cecília. entrei e estou na escola até hoje tendo que ouvir mas você era muito nova sempre que digo ter terminado o ensino médio com 15 anos.  um exercício de paciência que cultivo, mas logo logo responderei apenas com: eu devia era mandar todos vocês pra casa da tia maria.

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