sábado, 18 de julho de 2015

Juliana Bratfisch


Meu último ano com ele



1997 foi um ano longo, um ano muito feliz que acaba triste, inflado pelos oito dias excessivos de janeiro do ano seguinte que ainda compõem meu 1997. Às primeiras paixões, às festinhas de aniversário dos amigos, às tardes brincando na rua ou no quintal, às coreografias de balé, aos campeonatos de natação, às viagens de férias com meus pais para a praia ou para o interior de São Paulo, à escolha entre um caderno universitário ou um fichário para acompanhar a diversidade de disciplinas da quinta série, à primeira menstruação, acrescento a primeira grande perda de minha vida: meu avô Fred morre no dia 8 de janeiro de 1998 e retrospectivamente vejo 1997 como o último ano com ele. Oito dias esperando que ele melhorasse para poder ir visitá-lo no hospital. Oito dias depois, acordada, mas fingindo dormir ainda deitada na cama, ouvindo meu pai chorar no telefone.

– Rô, por que as pessoas vão para o céu?
– Acho que é para que as pessoas novas possam vir morar na terra.
– Não queria nunca ter matado alguém pra ter nascido!
– Ju? Eu não quero que você morra nunca, nunca!
– Nem eu quero que você morra, Rô.

Foi no Carnaval desse ano que fomos todos juntos para Guariba, Jaboticabal, Araraquara, Matão, Jaú, todas as cidades da infância de meu avô, todas as cidades que naquela época moravam os irmãos, primos e tios do meu avô. Meu pai dirigia uma Kombi vermelha e branca: ele e meu avô na frente, eu, minha mãe e o meu tio no banco traseiro. Talvez tocasse Tonico e Tinoco no toca fitas. Meu avô na minha memória ou estava ouvindo Tonico e Tinoco ou estava vendo SBT. Nem lembro se na Kombi tinha toca fitas, pra ser sincera. Me lembro de quando meu avô viu um vendedor de uvas na beira da estrada e fez com que meu pai parasse um pouco mal humorado e comprasse duas caixas de uva que comemos fartamente no resto do trajeto. Me lembro de quando chegamos em Jaú ter me impressionado o tamanho da minha tataravó, com quase 2 metros de altura, deitada na cama com parte das pernas pra fora. Me lembro que meu tio Joãozinho, em Guariba, insistia que era porque nossos parentes tinham origem alemã que eles falavam “cutunete”. 

Durante o ano todo, quase todos os domingos, eu ia com o meu pai pra casa dele. Lá tinha um quintal, uma horta com boldo, capim cidreira, figos e no corredor, do lado do córrego, as bananeiras. Lá tinha um gato preto chamado Isaú todo pulguento e três vira-latas: o Tchico, a Tchica e a Princesa, uma dobermann preta que eu morria de medo. Lá tinha duas Variantes na garagem, uma vermelha e uma azul e quando a gente chegava não tinha campainha, não: do portão de ferro a gente batia palma, gritava “ô, de casa!”. Meu avô aparecia na janela, a gente entrava, passava entre os carros e a horta e meu avô abria a porta de madeira da sala ainda de pijama. Na verdade, ele passava grande parte do domingo de pijama listrado, sentado no sofá, conversando com o meu pai e assistindo SBT. As vezes ele ficava de pijama até o horário que a gente ia embora e ele tinha que se arrumar para o culto na igreja. 

Nesse ano lembro de um sorvete de morango que ele fez pra gente. Eu me orgulhava de dizer que meus dois avôs faziam sorvete, bem na época que aquela maquinha podreca de sorvete da Eliana estava na moda entre os brinquedos. Eu ia lá pra brincar com os meus primos e com a minha tia. Lembro que ele me parou no corredor e falou assim: “Julinha, vai lá no freezer e pega um sorvetinho pra você, meu bem.” Ele me chamava assim, Julinha, jeito que nunca gostei que ninguém me chamasse. Só ele podia. 

Em outubro daquele ano ele foi internado. Daí nunca mais vi meu avô. Foram os meus tios maternos que cuidaram de mim no dia do enterro. Nesse dia, meu primo percebendo que eu estava triste e que não queria brincar, tentava conversar comigo e entender aquilo que pra ele, ainda naquele momento, era um grande mistério. 

– Você não quis ir lá se despedir dele? Teve medo? Dizem que eles ficam todos duros, gelados no caixão, com algodão no nariz e tudo...
– Minha mãe disse que era melhor eu dormir hoje aqui, que eu ia me impressionar.
– Você tem medo de morrer, Ju?
– Não sei. Um pouco. Não tenho medo de ficar lá, parada com algodão no nariz, não. Tenho medo mesmo é que a minha mãe morra. Não quero que ela morra nunca, mas acho que não tem jeito. Todo mundo morre um dia, né? Disso, eu tenho medo.

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quarta-feira, 15 de abril de 2015

Thiago Barbalho


Em 1997 não fiz nada de importante. Nem tragédias sofri. No máximo vi filmes de terror alugados na esquina – o medo, esse estímulo ao entediado que precisa se saber vivo. A gente se mudou pra vila militar. Passava um trem por trás da casa nova. Eu brincava por lá sozinho e escondido. Foi nessa época que cresci pra dentro. Nunca recorri a amigos fantásticos nem a super-heróis: eu tinha meus cachorros. O mundo não pedia imaginação: bastava olhar. Uma aranha-caranguejeira entrou no meu quarto. Que medo. E tinha também aquela amiga do colégio, com quem passei o ano criticando o resto da escola. A gente se protegia por trás de gargalhadas vingativas: falar mal de todo mundo era a nossa armadura. Adolescência. Minha camiseta de ET tinha seus últimos dias de uso, uma tristeza. Eu só era legal com ela. E agora? No ano anterior quase fui reprovado. Logo eu, antes um menino tão inteligente, agora carregava esse novo medo. Não seja reprovado. Bichos peçonhentos. Pelo amor de deus. Queria não ser burro. Mas que preguiça estudar. O mundo não era pra ser perfeito? Agora eu precisava me esforçar. A gente cresce e vai acumulando pavor, e a inteligência já não é suficiente. Diferente do mundo, que, justo ou não, basta. Já a gente, não: quanto mais ano, mais medo. É assim mesmo? Sou eu? Prazer eu tinha em fazer coisa nenhuma. O que tem de mal nisso? Ficar pensando. Brincar pra sempre. Lembra quando minha irmã achou uma cola no meu livro de história? O que é Marx? O que é um déspota esclarecido? O que é o mundo? O que é o medo? Como se eu fosse capaz de memorizar, entender, aplicar. Melhor abrir um pacote de passatempo. Melhor dormir a tarde inteira. Melhor assistir Mtv – isso se a antena der sinal. Melhor brincar com os cachorros. Quintal. Linha de trem. Mais ninguém. Em 1997 não fui à praia nenhuma vez. Em 1997 arquitetei ideologias de escape. Em 1997 eu já sabia que o passado parecerá sempre melhor? Não, em 1997 eu não sabia. E não saber era a minha sorte.


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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

cavaloDada

1997 foi 1ano catalisador, tlvz o 1o deles, vívidos e constantes, eu estava na 7a série, 12 p/ 13 anos, e a vida abria p/ mim certas janelas que eu dedicaria muito tempo adiante a contemplar e sentir os ventos.

percebia vazios e alegrias. tesão, tédio, raiva. tesão. sentava n1 cadeira de frente p/ a porta da sala de aula, que era mantida fechada! na porta havia 1janelinha de vidro que dava p/ 1escada, meus olhos voavam c/ as pernas das moças do andar de cima, borboletinhas rosas saltitando p/ o ensino médio. bem míope, magro, às vezes engajado em brigas c/ os playboys, nas quais jamais me saí muito bem graças ao porte físico de pacifista.

amava as bancas de revista, e meu radar captava então mudanças nos gibis. descobria a existência de roteiristas, artistas gráficos, diferentes modos de mostrar, narrar, misturar coisas. sérios mergulhos na fascinante fábrica de universos da criação.

nos ouvidos chegavam, c/ alg1 demora e juventude eterna, os ruídos lindos de nirvana pixies sonic youth. o “quer fazer faz!”, 1relação de arte e virulência, o valor da partilha, cidadania nos campos de extermínio, toda 1ética punk de militância e autonomia.

a rua, àquela altura, era o bairro diurno, a correria da minha bicicleta, e o reino vegetal p/ mim ainda estava circunscrito à goiabeira, ao mamoeiro, à pimenteira, ao pé de ata, ao de manga e ao de murici, que permeavam todos os meus caminhos.

veio fulminante, a poesia.

william blake foi o meu 1o guia, profeta nietzschiano e sócrates dionisíaco, pois deu início em mim a 1devastadora reviravolta de valores.

pelos vales das suas visões eu sentia, ao msm tempo, a febre da linguagem e a perversão irresistível da régua cristã (eu nasci e vivi muitos anos debaixo da cosmogonia bíblica), 1vislumbre de energias tão potentes ao lado de duendes e diabos, suores e vapores. 1escrita rebelde, mística e sensual, onde encontrei 1prazer lúcido das sensações.

e foi msm fatal, afinal “ñ se pode servir a 2senhores”: desde ali aprendi a ñ retroagir nunca do compromisso c/ a poesia, e nunca deixei de confundi-la c/ a descoberta de si msm, e c/ a sabedoria vazante do perigoso fogo.
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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Laura Assis

Em 1997, eu estava na sexta série que, até onde me lembro, é uma série meio sem graça. Não é interessante como na quinta série, quando você se sente meio adulto por ter saído do ensino fundamental e começa a estudar coisas realmente importantes, como a civilização Egípcia, Inca, Asteca, Maia. Aliás, nem todo mundo sabe, mas foram os maias que inventaram o nada, quer dizer, o zero. E é claro que a gente precisa respeitar e estudar uma civilização que alcança esse nível de abstração. Mas enfim, na sexta série não tinha Maia, abstração e nem nada que conseguisse ter meu interesse por mais de dez minutos.

Entretanto, eu me lembro de ter tido na sexta série uma professora de matemática muito jovem, alegre e simpática. No primeiro dia de aula, todos a adoraram e decidiram que ela era a melhor professora do mundo. Um mês depois, uma turma surpreendentemente em silêncio assistia a essa mesma professora esconder o rosto entre as mãos e chorar durante aproximadamente 15 minutos. Nós sabíamos que éramos indisciplinados e que os professores costumavam se chatear um pouco com nosso comportamento, mas fazer uma professora chorar era novidade e o pessoal até fez umas piadinhas depois, mas no fundo todo mundo ficou se sentindo meio culpado. Na aula seguinte, umas meninas levaram um buquê de flores para a tal professora, o que foi meio ridículo. É muito fácil ser ridículo aos 13 anos.

1997 foi o ano que meus amigos aderiram à moda de promover/frequentar Hi-Fi’s (1) e sempre que recebia um convite eu imediatamente era sugada para aquele lugar incômodo dos dilemas. Ir ou não ir? A dinâmica das festinhas era sempre a mesma, tudo girava em torno de tomar coca-cola e comer coxinhas, ouvir músicas horríveis – “And I say: Hey! yeah yeaaah, hey yeah yeah. I said hey, what's going on?” e “Where do you go ô ô ê ô I wanna know ô ô ê ô” eram hits e, se não me engano, esse foi também o fatídico ano de “Macarena” – e rir dos pseudocasaizinhos que iam se formando nos cantos mais escuros do salão de festas do prédio do anfitrião da vez. Eu achava um pouco chato. Às vezes alguém sugeria brincar de verdade ou consequência. Não dava muito certo, porque os meninos faziam perguntas nojentas que ninguém queria responder e as meninas nunca aceitavam pagar as prendas.
 
Sem contar que era extremamente injusta aquela regra universal de “menina leva salgado e menino leva refrigerante”, pois, uma vez que nasci mulher e nunca troquei e nem pretendo trocar de sexo, estaria eu condenada a levar salgado por toda a eternidade dos Hi-Fi’s? Se fosse hoje em dia, eu faria uma revolução naquele sistema patriarcal, apareceria na festa com uma garrafa de Guaraná Americana e despejaria um discurso feminista interminável em quem reclamasse, mas na época só implorava uns trocados para minha mãe e, se ela concordasse em me dar, corria na padaria para comprar umas empadinhas.

Ainda assim, acredito que ao longo de 1997 eu tenha frequentado aproximadamente 70% dos Hi-fi’s do pessoal da minha sala. Todos foram exatamente iguais, com exceção de um que terminou em uma sessão de pique-três-cola-americano, modalidade complicadíssima de pique que, até onde sei, só existe aqui em Juiz de Fora (2).

1997 foi também o ano em que entrei para o grupo de teatro da escola. Fiquei por lá seis anos, mesmo sem nunca ter tido a intenção/ilusão de ser atriz. Geralmente eu era a iluminadora, o que consistia em apagar e acender a luz no momento certo (no início e no final da peça, respectivamente).

O pessoal do teatro era mais descolado e não frequentava Hi-Fi’s, o que rolava às vezes eram umas voltas pela rua depois dos ensaios, que terminavam mais ou menos umas oito da noite. Nesse contexto, era frequente a prática de atividades recreativas como: descer o caminho da escola até o centro gritando desesperadamente por socorro, simulando verbalmente assaltos, estupros e até mesmo tentativas de homicídio. Acho que era uma espécie de laboratório extremo de atuação. Era difícil chegar em casa e me comportar como uma pessoa normal depois de viver tantos dramas fictícios.

As pessoas que frequentavam o grupo de teatro tinham idades variadas, entre 13 e 17 anos, mas não havia nenhuma divisão, todos eram relativamente próximos e, no geral, ninguém era dado a picuinhas, implicâncias e nem nada daquilo a que hoje chamamos: bullying (3). Mas tinha um cara um pouco mais velho que eu, talvez uns 15 anos, que simplesmente me odiava e eu não fazia/faço ideia do motivo. Aparentemente, ele se sentia extremamente afrontado pela minha existência e não fazia questão de esconder isso, chegando a sair de um lugar quando eu chegava e perguntando frequentemente aos meus amigos: “por que você anda com essa menina?”. No final do ano teve um amigo oculto e ele avisou que se me tirasse ia me dar um rato morto de presente. E eu lembro que pensei “onde ele vai arranjar um rato morto? não seria mais fácil só trocar o papelzinho com alguém?” (4).

Se eu acreditasse em reencarnação, diria que na vida passada eu torturei e matei toda a família dele, algo assim. Um amigo em comum uma vez me falou, meio que brincando e meio que se desculpando “não liga não, ele é doido e não vai com a sua cara... acho que ele só te acha... estranha.”.

Ser objeto da raiva inexplicável de alguém me incomodava menos naquela época do que incomodaria hoje. Ainda assim, até pensei em sair grupo de teatro para não ter mais que encontrá-lo com tanta frequência, mas, felizmente, ele era burro e repetiu o ano, o que fez com que os pais dele cortassem todas as atividades extracurriculares. Eu, que na época acreditava em deus, encarei como justiça divina.

Aliás, semana passada eu me sentei num bar no centro da cidade e esse cara estava na mesa ao lado. Tinha pelo menos uns 15 anos que eu não o via, mas reconheci imediatamente. Não tive a menor vontade de cumprimentá-lo.

*

(1) Para a maioria das pessoas, Hi-Fi é aquele drink de fanta laranja e vodka ou a abreviação de "High Fidelity", mas aqui em Juiz de Fora e adjacências é como chamamos aquelas festinhas pré-adolescentes que em outros lugares têm o nome de “bailinho”.

(2) Procurei no Google, com e sem hífen, e as duas únicas ocorrências são: a página de um hotel fazenda aqui da cidade descrevendo as atividades previstas para as crianças na colônia de férias; um juiz-forano chamado Thiaguin_JF falando de sua infância em seu fotolog.

(3) No geral, a escola e a minha sala, mais especificamente, eram o reino do bullying. Imagino que todos tenham saído dali extremamente traumatizados, era meio pesado viver naquele ambiente hostil. Alguém deveria estudar esse caso.

(4) Felizmente ele não me tirou no amigo oculto e eu não ganhei um rato morto e sim um belo porta-retrato pintado à mão. Tenho guardado até hoje. 

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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Ana Martins Marques

Le vent se lève!... il faut tenter de vivre

Em 1997 eu tinha acabado de fazer 19 anos e estava morando pela primeira vez fora do Brasil. Seria também a única em muito tempo e talvez para sempre, mas isso, então, eu não tinha como saber. Estava morando fora do Brasil e tinha o coração em dois lugares, o que é mais ou menos como amar duas pessoas. Eu me perguntava todos os dias, como uma personagem do Breve carta para um longo adeus, do Handke, que em 1997 eu não tinha lido ainda: Este é o segundo dia que passo na América. Será que já mudei? Eu não estava na América e ainda não tinha lido o Handke mas me perguntava todos os dias: será que já mudei? Anotação num caderno da época: Amanhã serei ainda esta que quase já não sou? Estava muito sozinha e escrevia muito. Escrevia, por exemplo, cartas, já que era 1997 e as cartas ainda existiam, embora estivessem quase deixando de existir, mais ou menos como aquela que eu quase já não era. Escrevia também uns quase poemas, notas sobre nada, citações que colhia nos livros naquela língua que eu quase sabia embora na verdade não soubesse não. Por exemplo: Où est le Christophe Colomb à qui l'on devra l'oubli d'un continent? E embaixo: Apollinaire. Ia enchendo cadernos pra esquecer um continente. A escrita era o meu Colombo? O continente, acho, era eu. Ou então eu só estava mesmo me sentindo muito sozinha.

Era 1997 e eu era babá numa família com duas crianças. Acho que os pais me aceitaram, apesar da minha falta absoluta de jeito com o mundo, por causa do afeto que eu tinha pelos meninos e que eles pareciam ter por mim. Ou então eles só estavam mesmo sem alternativas. Eu passava os dias desenhando e brincando na pracinha e conversando conversas de criança. Nos fins de semana pegava o ônibus para algum lugar. Ia muito a Sète para ver o cemitério marinho. Era perto, mas não muito eficaz contra a melancolia. Lia em bancos de praça ou na praia ou de pé nas livrarias. Foi, só agora eu penso, quando morei mais perto do mar. No meu primeiro dia com eles, era janeiro de 1997, nós fomos ao circo. Era um circo muito pequeno e simples, o que é sempre triste. Quase no fim a pequena equilibrista caiu da corda bamba e aquilo se parecia com o meu medo. À noite eu ninava os meninos com canções do Chico Buarque. Ninava também talvez um pouco a menina que eu quase já não era.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Ana Lucia Silva

o mundo quase acabou em 1997

Tem um momento na vida q vc se sente na crista da onda. Parece que anda dando tudo certo. Vc faz tudo o q se espera e recebe os aplausos da torcida. Faz nem sabe bem porque, faz porque todo mundo faz.

Eu lembro que cantava “Stand by Me” do Oásis enqto dirigia meu carro “Nobody knows Yeah/ Nobody knows the way it's gonna be” a caminho de ir buscar a chave do ap novo.

Conquista de tantos trampos, o lance era qualidade e tudo carimbado com ISO 9000, 9001, 14000. Controlar toda a cadeia produtiva. A engrenagem saia do material para o imaterial. O capital se deslocava para o tal dos recursos humanos para treinar o corpo a exaustão e quanto mais dócil mais Total Control Quality

Mas daí o alerta: bip...bip...bip...eu tinha vindo com defeito. Qualidade rejeitada na esteira da produção. Deu tempo ainda do médico dizer: Se vc chorar, eu choro também. Eu percebi que o negócio tava preto. Rim é órgão vital, porra!

No máximo dava pra traçar um Diagrama de Pareto e torcer pra poder abrir os olhos depois da mesa de cirurgia.

Mas não era hora desse mundo pra mim se acabar. Só se acabou aquele mundo certificado. E deixei solto, deixei correr solto: “Yeah - God only knows the way it's gonna be”.


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Ana Lucia Silva

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Bruna Beber

1997 foi um ano químico. Me dediquei sobretudo à produção de perfumes. Leila Percas e Ganhas, cujo batismo se efetivou depois da primeira aula sobre percas e ganhas de elétrons (sic), decidiu nos iniciar à gincana das fragrâncias.

Íamos apresentar um trabalho sobre perfumes pra ganhar pontos extras sem fazermos ideia de como fazer um perfume. Leila P&G, com seu impulso de cama elástica parada, desafiou "Ué, pesquisem. Lá no Mercadão tem tudo".

As instruções eram objetivas: Mercadão de Madureira/ loja de essências/ essências/ vidrinhos/ tampas. Depois, uma loja de presentes: saquinhos/ lacinhos/ caixinhas. Por fim, uma papelaria: etiquetas/ um toner de impressora/ cola.
Em uma tarde na casa da Iracema, a única pessoa do mundo que conseguiu usar os cds de instalação da AOL pra alguma coisa além de móbile de teto, e também a única que podia usar a internet antes da meia-noite livremente, achamos as respostas principais no site Cadê? e alguns detalhes no AltaVista.

Naquela época isso significava nada. Procuramos por alguma sala de bate-papo de farmacêuticos no Zip, nada. Enciclopédias, pararam em botânica. Ninguém mais tinha um Pequeno Químico inteiro e o Telecurso 2000 há três anos só ensinava MMC e MDC.

Em trinta minutos no Mercadão de Madureira, o vendedor nos ensinou não só a fazer perfumes, como xampu e creme rinse, o futuro condicionador. Minha função decidida pelo grupo era simples: fazer as misturas. Saí da loja confiante de que perfumaria a escola, o bairro e o meu avô, resistente ao elemento água.

Comecei com alfazema, um cheiro clássico e fresco, a alegria das professoras. Depois copiei O Boticário: Quasar, Dimitri, Tati. Por intermédio e crítica de uma amiga me aprofundei copiando a Calvin Klein – CK One e CK Be - visando atingir o público adolescente.

Mas foi com versões Avon que tive resultados mais satisfatórios. O perfume Toque de Amor é minha lembrança de fragância mais remota. É também minha lembrança mais remota de veneno. Como uma fada, por onde passava, vovô deixava seu inconfundível cheiro misto de roupa mal lavada com falta de banho: toque de amor.

O dia da apresentação se aproximava e eu tentava convencer o grupo de que devíamos mostrar o que nós mesmos havíamos desenvolvido. No caso, eu, sem oportunidade de escolha, em nome de todos, havia passado maravilhosos momentos transformando meu fracasso em copiar o sucesso alheio em sumo êxito pessoal. Criei minha própria coleção.

Cenário Beleza: folhas de mangueira com desodorante Musk. Até o Caroço: uma imersão de caroços de ameixas pretas comidas com incenso esfarelado de sândalo. Cajuliana: folhas de cajueiro socadas e descansadas por três dias dentro de um Vinólia rosa.

Tiramos zero. 
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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Dimitri BR

hum ano partido

parte I

1997 me partiu ao meio. metade cá no Rio, metade lá em São Paulo. no Rio, eu; em São Paulo, Lucila. e daí ônibus, carro, até na boleia do caminhão do pai do Cláudio eu fui. em São Paulo eu era clandestino: Lucila era menor, transar na casa dos pais não podia – e daí casa de amigos, banheiro, escada de prédio.

em 1997 larguei a UFRJ. fiz teatro pela última vez e tinha agora a primeira banda que só tocava músicas originais – minhas e do Achilles. mas o amor me partia e era difícil deixar o mar.

me inscrevi no vestibular da USP. pra Lingüística – que em 1997 tinha trema. (juntar línguas e letras com Lucila.) não avisei meus pais da mudança iminente: clandestino agora também no Rio. só que prima Carol também prestou USP; saem os resultados da primeira fase, minha mãe liga pra mãe dela: “como foi Carol?” “Carol foi mais ou menos”, responde a mãe-de-lá, “mas Dimitri foi muito bem!”

estava revelado meu plano de fuga. meu plano do que era o oposto de uma fuga. em 1997 fiz vestibular pra Lingüística, com trema. na USP – na U de SP. passei. e fui.

mas aí já era 1998.


parte II

1997 passei em trânsito: boleia de caminhão, carro, ônibus. 
num desses - Ubatuba-Rio - com Hofty:

[embarque] 
“não vou poder falar por um tempo, estou compondo uma música.” 
“beleza.”

[escala em Parati] 
“terminei a música, quer ouvir?” 
“deixa eu pegar o bongô.”

mas aí já era 2013.


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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Victor Heringer

PERDER OS DENTES DA FRENTE EM DOIS ATOS

PRIMEIRO

B.: Bom dia.
V.: Acordei atento. Sabe atento?
B.: Sei atento. Você olha para fotos de crianças na revista de domingo e as vê adultas, depois velhas, depois vê os filhos, os netos e todas as gerações de filhos e netos.
V.: Isso.
B.: Fuma que passa.

B.: Agora você está deprimido?
V.: Agora sim. É o cigarro.
B.: Aqui, come esta maçã. Trouxe umas fotos suas. Você criança.
V.: Não vejo nada.
B.: Espera um pouco.
(Pausa)
B.: Está lembrado?
V.: Não.
B.: Olha para a foto.
V.: Não.

B.: "3 de abril de 1997".
V.: Que tem?
B.: O dia da foto. Escrito no verso. Está lembrado?
V.: Minha boca sangrando.
B.: Sua boca sangrando, o que mais?
V.: Meu irmão socou minha boca.
B.: Os dois dentes da frente caíram à força.
V.: Nem estavam moles.
B.: Um menino tardio. Come esta maçã.
(Pausa)
V.: Um garoto tardio.
B.: O que mais?
V.: Jogamos futebol no quintal. Isso não aparece na foto.
B.: As traves dos gols eram quatro árvores. Duas suas, duas do seu irmão.
V.: As árvores dele não cresceram tanto. Pouco sol.
B.: O soco.
V.: O soco foi antes da foto.
B.: As árvores ainda estão lá?
V.: Lá onde?

SEGUNDO

V.: Tinha um canário.
B.: Baltazar, Belchior. Um dos três reis magos.
V.: O gato comeu o canário.
B.: Rarrarrá o gato comeu o canário?
V.: Comeu o canário. Um gato que não era nosso.
B.: Abaixo a propriedade.
V.: Abaixo.
B.: Você já está bêbado? Como era o nome do terceiro rei mago?
V.: Já. Aí fui pintar, eu era pintor, e derrubei tinta no chão. Tinta preta. No chão do quintal, a parte de cimento do chão do quintal. Ficou igual o Elvis Presley.
B.: Detesto o Elvis Presley.
V.: Todo mundo detesta. Está lá até o hoje o Elvis. Com topete.
B.: Lá onde?
V.: Rarrá.
B.: Quer ver outra foto?
V.: Você consegue ver os meus filhos, meus tataranetos?
B.: Sua foto do passaporte. 1997. Para onde foi?
V.: Não lembro.
B.: Você já tinha medo de matar alguém?
V.: Já.
B.: Já quebrou o braço?
V.: Nunca quebrei nenhum osso. Já lia Dostoievski.
B.: Mentira.
V.: Mentira.
B.: Animal?
V.: Antílope.
B.: Gato não?

V.: Não é insuportável?
B.: É.
(Pausa)
V.: Lembrar.
B.: É.
V.: Não me lembro de muita coisa.
B.: Cor favorita?
V.: Vermelho.
B.: E o backstreetboy favorito?
V.: O bonzinho.
B.: Rarrá.

V.: E o Vasco?
B.: Ah, pelo amor de Deus.
V.: Deus não?
B.: Nem você. Nem você?
V.: Deus claríssimo que nanão.
B.: Um livro?
V.: Dostoievski.
B.: Gosta de alguma menina da sua sala?
V.: Claro que não, para com isso.
B.: Gosta sim.
V.: Gosto não.
B.: Gosta si-im.
V.: Quer perder os dentes?
(Pausa)
B.: Por favor, come esta maçã.


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Victor Heringer

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Luca Argel

Você sabe o que é Halle-Bopp?

Em 1997 também ninguém sabia. Nunca ninguém tinha visto um (apesar do nome ter uma certa cara de anos 50). Se fosse um estilo de música, eu não escutava. Em 1997 eu abria o encarte de Gol de Quem?, pulava a regravação da Volta do Boêmio, que achava chatíssima, e me punha a decorar a letra de Mamãe Ama É Meu Revólver. Tinha o quê? Nove? Oito anos? Achava que os roteiristas de Toy Story tinham me roubado a idéia.

Já tivesse eu notícia de Halle-Bopp, talvez fosse mais fácil encontrar um nome melhor pro meu time de futebol de botão, que acabei por batizar "Os Dragões". O nome até me parecia arrogante, mas achava-me no privilégio de escolhê-lo porque tinham me dito que era Dragão o meu signo no horóscopo chinês. Foi nessa mesma ocasião que senti pela primeira vez que o mundo podia ser injusto também a meu favor. Foi depois de descobrir que ao invés de Dragão, eu poderia ter nascido Porco, fosse 5 anos mais velho, ou até Rato, fosse 6 mais novo.

Em 1997 meu irmão tinha 3 anos - isto é, Galo (menos mal). Um dia fomos de carro deixar alguém, ou buscar alguém, não me lembro, no aeroporto. E esse alguém, de quem também não me lembro, me deu um bóton da capanha Rio 2004 (para sede dos jogos olímpicos). E 2004, eu pensava olhando pro bóton, era o cúmulo do futuro. Guardei o bóton - e ainda o tinha quando chegou 2004. Até lá já havia o Halle-Bopp, mas olhar o bóton era uma decepção, porque não me fazia sentir nem um pouco no futuro.

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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Leandro Durazzo

entre dois outros anos está um ano passado. Vizinho ao reino confortável do que não volta mais. Pra trás ficaram coisas, paredes enevoadas, memórias gastas. Talvez falsas. Ficou o tempo em que ainda tinha muito tempo à frente. Hoje, mesmo tendo, temos menos. E quanto mais tempo guardamos, mais passado, menos espaço sobra pra manobrarmos. O barco afunda. Em 1997 ele mal se lançava ao mar.

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segunda-feira, 15 de julho de 2013

sábado, 25 de maio de 2013

Inês Achando

Em 1997 fui finalista do 1º ciclo! A professora disse que naquele dia tínhamos de ir todos vestidos com calças de ganga e t-shirt vermelha. 

Olhando para ela vi todos os puxões de orelhas dos últimos dois anos de escola. Vi também a pessoa que me ensinou a ler e a escrever; revivi os olhares arregalados que me fazia quando eu dava uma “resposta da lua” e quando a minha folha de ditado somava para lá de 20 erros só no primeiro parágrafo. 

Ela fazia-me tremer e desconcentrava-me as ideias quando me queria concentrada nas contas de dividir. 

Nessa manhã de fim de ciclo, estava a turma toda alinhada no palanque, meninos na fila de cima, meninas na fila de baixo, bem sorridentes para o momento da fotografia. A professora subiu para junto da turma e cantou connosco a música do final de ano que andamos um mês a ensaiar com o professor de música. Era um medley de músicas populares que tínhamos aprendido ao longo do ano escolar. 

As meninas preferiam ter feito uma coreografia da música das Spice Girls. Os meninos podiam ser os Back Street Boys, mas eles nunca gostavam dessas brincadeiras. 

O 4º ano terminou. É altura de seguir o caminho, atravessar a rua e entrar no portão da “escola dos crescidos”. 

Na plateia os rostos emocionados de pais e mães babavam-se para os seus filhos. 

A minha mãe e o meu pai também, claro, e aplaudiam a música. Na mão tinham a minha cartola de finalista e um diploma com uma fita cor-de-rosa com o emblema da escola e a minha fotografia: a fotografia escolar de sorriso tímido, blusa colorida com flores, casaco branco de malha e uma fita no cabelo com um laço bem grande. 

Levei todas as imagens comigo. A professora colocou-me a cartola e deu-me um abraço bem apertado. 

Fiquei de coração cheio porque ela disse que gostava de mim e eu, que gostava dela, pensava que às vezes ela era má comigo. Chegou a ser cruel quando dava um ralhete depois de eu me ter esforçado tanto. Chegou a ser cruel ao ponto de não me dar “excelente” num teste de Estudo do Meio porque escrevi mal uma palavra e foi logo deixar no canto da folha de teste um 99%. Fiquei aborrecida e fui para casa a remoer naquela injustiça. O teste nem sequer era de língua portuguesa! 

A escola terminou e deixou saudades. Meu namorado Tiago foi para outra escola. E o caminho que parecia ser só atravessar a rua, tornou-se imensamente distante pois nunca mais voltei a levar as bonecas para a escola e a brincar de pai e mãe com ele. O Tiago era um excelente pai de bonecas. 

Em Agosto, depois de soprar as minhas 10 velas, comecei a pensar no grande passo que me esperava ao entrar na “escola dos crescidos”. Em Setembro, como era hábito, fui ao dia de apresentação na companhia da minha mãe, muito consciente da importância desse primeiro dia. Caras novas de colegas e professores. Mas o mais monstruoso foi a imensidão de novas matérias: sete disciplinas implicavam organizar 7 cadernos e estudar 7 livros diferentes. Impressionante! Só espero ter tempo para brincar, pensei eu repetidamente, com aquele sentido de responsabilidade a palpitar-me no peito. 

No final, a minha mãe levou-me a lanchar para descomprimir. Ela sempre soube como tratar de mim. 


Almada, 25 de Maio 2013 

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Inês Achando

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Rita Brás

em 97 minha avó morreu.
no dia de aniversário da minha melhor amiga. a gente tinha ido dançar nessa noite para o Jamaica, uma discoteca no Cais do Sodré, e eu cheguei em casa bem tarde. me lembro de um momento dessa noite em casa de minha mãe depois de chegar, entrar na casa-de-banho, me olhar no espelho, e de ficar quieta. mais tarde pensei que senti o exato momento da morte da minha avó. mas não sei, nunca soube, bem a hora em que morreu. ela estava num lar. coisa meio triste, mas a decisão não era minha, e eu ia visitá-la toda a semana. foi minha mãe que entrou no quarto de manhãzinha pra me dar a notícia, ela começou a chorar e estava nua, e uma estranheza enorme me invadiu, porque ninguém esperava. ninguém esperava nada disso, nem a morte, nem a estranheza, porque era meu avô quem devia morrer primeiro. lembro-me de ouvir que minha avó estava no lar só para meu avô ficar melhor. Minha amiga Teresa fazia 17 anos no dia 23 de fevereiro. Mais tarde soube que é o dia em que morreu também o Zeca Afonso, dez anos antes da minha avó. Nessa altura costumo pensar que eles estão juntos, não conversando, mas rindo muito de nós, e da nossa obsessão com datas e papéis manuscritos, videos na internet, loiça e saladas. Em 97 eu comecei a visitar mais meu avô, porque ele estava sozinho no lar, e então eu lia para ele às vezes, mostrava-lhe fotos. Conversávamos. Sentia uma ternura diferente por ele, agora, e lembro-me de pensar que nunca o tinha conhecido antes, porque eu era da minha avó, e meu irmão é que era dele. E isso a gente até herda: eu fiquei com o relógio de ouro e as jóias dela, e meu irmão com o carocha de 63 dele. Nesse ano de 97 eu fiz férias de Verão na vila de Coja, com a minha amiga Teresa (que tem lá família) e outras amigas nossas do liceu. Minha prima Juliana também foi lá ter. Tenho muitas sensações desse Verão: lembro-me do Moleiro (que aparece no filme "Aquele querido mês de Agosto" do Miguel Gomes) se atirar aos lindos olhos de minha prima, lembro-me de ouvir o álbum Zooropa dos U2, de estar debaixo da cascata do rio, de haver um colchão com dinheiro que alguém tinha descoberto, de beber vodka red bull pela primeira vez, da discoteca ter uma porta secreta nos fundos por onde a gente saía sem pagar. De Coja enviei um postal ao meu avô, que minha mãe achou agora na garagem da casa da costa. Acho que com os avós meio que a gente adopta o jeito antigo de eles falarem, há um respeito diferente. Esta casa da costa era a casa de férias deles, e pelos vistos foi meu pai que guardou o postal num dossier lá na garagem. Depois do meu pai morrer há dois anos, foi minha mãe quem ficou com a casa. As obras começaram a semana passada.










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sexta-feira, 3 de maio de 2013

Rita Natálio

1997: mil novecentos e noventa e seta
"Para onde?"
eu, suspeita e indecisa por dizer EU,
eu e o tempo como uma barricada, inimigo provisorio das minhas perguntas
a pergunta do "Será que vale a pena?"
a pergunta de "Qual é o sentido?"
"Depois de amanhã não existo", "ontem morri", "hoje desapareci"
trança cósmica da linguagem e paixões de eu-dizendo-EU em frente do mundo
julgando, questionando, manobrando fantasmas
noventa e seta, direção do abismo
15 anos, e o suicidio presentificado nos meus gestos
noventa e sete comprimidos, estranhos pós de adormecimento

Agora penso
talvez eu tenha conseguido passar de 1997
porque sua seta me levou
para fora do EU
aprendi a ler e escrever depois de 1997?
em 1997 saltei à corda do infinito?
prometi viver de bons encontros?
tudo isso e muito mais.
e também tirei o aparelho dos dentes
e pude morder a maçã como se fosse a primeira vez

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sexta-feira, 8 de março de 2013

Joana Pupo

em 97 tinha 19 anos
tinha acabado de entrar na universidade
já dedicava parte dos meus dias ao teatro e à vida associativa
tinha excesso de confiança
e uma barriga escondida de insegurança
dores de barriga muita vezes, portanto

em 97 sonhava encontrar um amor
investia o meu corpo em transes
dançava e bebia noite dentro dormia pouco
como nunca mais soube fazer
não me lembro porém de ter dores nas costas

em 97 tinha redescoberto os meus pés
descobri as viagens solitárias focadas num sonho
vi o mundo de cima das nuvens ao som de uma música importante
comecei a fluir mais com o mundo e pelo mundo
gigante

em 97 em 97 em 97 parece um refrão
parecia que ainda não estava na estrada certa
parece-me agora que já me lembro pouco
talvez 97 seja uma ilusão

em 97 lembro-me apenas que 97 me parecia bem real
que estar ali não era igual a nada que eu tivesse já vivido antes
e sabia bem
era ainda uma vida meia paralela, mas um pouco já aquela
já era uma vida
que valesse a pena ser vivida
e a luz na praça de república era interessante no outono e na primavera
era uma luz de fim-de-tarde, de noite ou de madrugada
a minha cidade era mais bonita em 97
e nesse momento foi muito a minha cidade e pouco depois deixei-a

obrigada por me lembrares de 97

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Joana Pupo

Pedro D'Omingos

em setembro nasce o meu primo andré, entrei e saí de um seminário missionário, uma mudança muito grande de escolas, 7º ano.

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quinta-feira, 7 de março de 2013

Sofia Neuparth

em 1997 nasceu o andré meu filho
em 1997 o cem saiu do estúdio da bailarina da gulbenkian marta atayde e foi para um lugar onde podia abrir as asas na praça da alegria
em 1997 contruimos a parede de tijolos na praça da alegria
em 1997 reunimos para nos transformarmos numa associação cultural
hihihi

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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Priscila Amoni

lembro outro dia que não lembrava de nada. você perguntou, e só se dava o embaralho dos planos cortados e montados na hora, alguns até em seu incólume fade out, nascido do não deter alguma ocasião provavelmente tão efémera, tão infantil quanto eu em mil novecentos e noventa e sete 
sou agora, portanto, eu, a moviola, uma cadeira desconfortável, pilhas de rolos desenrolados que vêm do teto, das paredes, do chão atrás de mim, de mim. minha memória e eu.
preparei a sala escura e esperei um amanhecer qualquer que me trouxesse os noventa, no meio do segundo meado.
essa condição humana de montadora do passado faz pensar no futuro. que eu, naquele ano, não tinha a menor ideia de onde estaria em 2012. nunca sabemos o que estaremos fazendo daqui a 15 anos.
não estaria eu refletindo sobre isso, parada no sinal de pedestre, numa avenida atlântica de balneário camboriú em 95. os azuis ao fundo, a vontade de atravessar a rua ou nenhum sentimento por isso, menos que isso, eu a olhar o mar apenas.
Tão efémero quanto eu foi aquela atlantica ser invadida por um sem número de motoqueiros harley davidson e suas altas colunas, momentâneamente entre mim e o mar. todos cantavam e sentiam uma música - que depois eu saberia ser wonderwall, do oasis.
em 97, no entanto, nada de futuro.
em 97 conheci meu pai biológico.
um grande e branco passe-partout dentro de um cubo branco.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Marion Hesser


Na 7ª série. É a primeira coisa que eu sei. Os de 1984 fizémos o pré em 90 então até a 8ª foi sempre emparelhado.

Deste ano me lembro sobretudo do Jairo.

Ele foi meu professor de português e era o marido da Rosa. O Jairo era um cara legal. Ele dizia que era meu "fon" em vez de "fã" porque meu nome terminava com ‐on e não com ‐ã. Essas coisas.

No segundo semestre letivo tivemos que preparar canções da música brasileira. Escolhíamos, imprimíamos a letra numa folha de papel vegetal, relacionávamos uma imagem por detrás do papel e cantávamos. Can tá va mos.

Foi a primeira e a única vez que eu cantei em público.

A música que escolhi foi uma que escutei no rádio no carro com minha mãe. Se chamava "Estrela" e na rua da loja do meu pai eu comprei o disco, o "Quanta": todo rosa e estranho para mim. Aquela música era uma música de Gil e eu ainda não conhecia Gil.


Quando vim escrever este "onde estará" imediatamente cacei o disco. Aqui em casa, intacto dentro do pó. Júlia, você não sabe o tesouro que eu encontrei: o encarte do "Quanta" é um tesouro. Daí
que é ele o que eu quero deixar, ele o que quero mostrar para o ano de 1997, em 10 esforços de escaner:



































quinta-feira, 22 de março de 2012

Antônio LaCarne

Selvagem, 1997, o coração preso à dependência do que no futuro teria nome, cara de monstro, e uma pausa no silêncio. A manipulação do sono e dos sonhos. Nunca mais eu estaria ausente. A solução para os problemas surgiria com doses homeopáticas de maturidade, e os 14 anos de idade em questão, serviriam para uma prova ao sexo em contraste com tanta inocência proveniente das ruas calmas e ensolaradas do interior: uma cidade propícia e à deriva, as portas fechadas, uma preparação para tudo e nada.

Sim, em um ano a mudança para a grande cidade. 1998 quando 1997 é a questão, é o que neste instante importa, como uma lembrança em homenagem ao passado, de volta ao que eu era: flor desabrochando no segredo do casarão plantado por longos corredores, idas ao colégio de freiras, lágrimas aos deuses e santas.

Mas por algum engano ou curiosidade, mantive os olhos abertos para o possível primeiro choque jamais relatado em textos. Se não me falha a memória, titia recém descoberta me levou para sua casa de altos muros, riqueza que jamais me saltaria aos olhos, pois tudo o que eu imaginava seria a aceitação de quem ali perto deveria segurar a minha mão e provar que todo o tempo perdido me fortaleceria na guerra. Guerra que desvendei numa atitude de quem só tem um rosto, duas mãos.

Houve o tempo previsível de sol, praia, ritmos frenéticos do meu silêncio até então lacrado num envelope. Escrevi uma carta onde me ditaram cada palavra, dramas, dores, infelicidade. Era um jogo para atrair a piedade de pai e megera. Mas depois do falso alarde, voltei ao centro de tudo, ao centro de mim, mantendo calmo o mar de uns olhos que poderiam ter visto além dos campos e serras e cavernas. Sozinho, dentro do ônibus, eu observava a nebulosidade silenciosa da montanha tão verde, a estrada tão perigosa, meu senso de segurança tão aguçado como se toda história fosse uma qualidade dramática da família que me oferecia ouro, vastidão de gestos, e cumplicidade, como um cronograma de bons modos, boas sortes, bons mistérios que a vida proporciona. E em 2012 você redescobre os porquês das idas e vindas. 1997 foi selvageria disfarçada de força na adolescência.
 
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sábado, 17 de março de 2012

Roberta Ferraz

1997,

Naquele documento só constava assim: 1997, desidratações. Há obviamente uma sequência de coisas intencionalmente deixadas para a inexistência tão crua deste ano. Precisei intercalar 1997 com outros dígitos, marolas de outros anos, e a memória derreteu-se para o magenta, para o abalone: é este anel em minhas mãos. Começo a chamá-lo: neste anel a concha já revelara a moça indefesa, viria depois a bruxa para só então, ser, antropomórfico como um minotauro e aí pairar desconhecido, com as cracas, num fundo de um rio. Venus Urânia, Venus Anadiomena: um pêndulo de hipnoses, é certo, aquele caminho: deixar os cabelos crescerem a partir daí. Sem escapatória. Abaixo da cintura. Cinturão de Órion, cravejado, nas mãos.

Toda história é onírica depois de 1997. É o que os 16 anos, quando são excessos, legam. O corpo-ardor, a corça-de-brumas, as cidades-surrealistas, o amor como uma primeira identidade, primeira caricatura, a intimidade da encruzilhada. Caminho pelos campos de trigo? Chamo os lobos da estepe? Moro numa casa de vidro? Quantos peixes no aquário? Estou perto do coração selvagem? Noites na taverna. Noites na taverna. Você acredita na metempsicose? A disposição elástica do corpo contagiava todas as palavras. As palavras estavam em todos os corpos. Os corvos ao pé da cama. Mapas astrais numa fita cassete, indo e vindo, através do futuro, ainda claro e estrangeiro. Calor obsessivo em Ribeirão Preto, e tantos manuais de trigonometria ou guloseimas alquímicas de eletricidade, nunca entendidos, eu ficava à janela. Quando, o azul-e-branco? Cavalgando demais, Toronto, Toronto o alazão das minhas coxas, nu e potro sob a minha velocidade. Na casa, aquela que era eu seguia abrindo janelas. O equilíbrio exato dos segredos. Na casa, faziam a mesma festa, quando do outro lado nenhum olhar me vigiava, o jardim. Cartas e fitas gravadas, música o dia inteiro. How beautiful could a being be? Rapte-me camaleoa. Adapte-me. Adolescente ruído que já era encruzilhada sem dedos. Disse três vezes. O ritual espontâneo da palavra. Em 1997 começa-se a dizer. Tudo tão a grito, o carmim da cruz, para lá, para cá? Vertigem alcoólica, escoriações. A próxima identidade.

Toronto morreria dali a pouco. Uma amiga que não vê, todos os dias. Literatura. Excitação pela busca da comida. Nas brumas leves das manhãs que vêm de dentro. Disposição elástica do corpo: frenesi e feriado. Patins pela ladeira da avenida do gás. Nó de rosa, dar a volta no mundo, com o berimbau e a Bahia. Inocências como jacintos. Duas daquelas flores no asfalto. Explodindo a Avenida Portugal. Palíndromos: moradas. Repetições, repetições – muda o registro (é o aro que eu tento impôr, daqui de fora). Ah, que ilusão! Uma fita cassete que me leva de 1997 a 2009 para então se afundar num leito de rio, de palavras, de silenciosas frestas. Um orelhão numa praça vazia da cidade mais vazia do interior. A repulsa ao jardim, o soro de hóstias, o cinema que arregaça fugas. O sono: ninguém teria culpa. Mas quem saberia disso antes de 2010. Antes de 2009. Estivemos quantos anos neste banho de água parada? E o sol quarando nossas roupas no varal. Afasto o calor. Pela memória. Não me admira que 1997 queira dizer-se como carta póstuma, (desculpe, não há mais fotografias) queimada ao acaso junto com outros papeis desimportantes. Este anel em minhas mãos, as minhas mãos no fundo de um rio. Magenta-verde, arder de um rosa vívido, quantidade elétrica dos sonhos e dos esquecimentos.

Agora já não me resta nenhum orgulho, só o sabor de me saber sido intensamente jovem contigo. (apêndice)

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segunda-feira, 5 de março de 2012

Glaura Cardoso Vale

em 1997, já fazia teatro
estreava uma peça mítica do Nelson Rodrigues, Senhora dos Afogados
com mais 14 universitários
fazíamos parte de um grupo dirigido por uma atriz e diretora já reconhecida em Belo Horizonte
hoje vive em São Paulo
sala lotada nos três dias

era momento de euforia juvenil
em que não se sabia ao certo no que ia dar tudo aquilo
muitas dúvidas como em qualquer fase da vida
sempre me orientei por caminhos incertos
eu tinha 23 anos e um desejo enorme de escrever
e alguma coisa, naquele tempo, estava começando a dar sinais de que valia a pena correr o risco
não sabia se seria romance, dramaturgia ou poesia
também o cinema, escrever para o cinema
ah! como passei a amar ainda mais o cinema no ano de 1997
começava minha paixão por Bergman
os relógios sem ponteiros,
os fantasmas assombrando a casa

depois veio Truffaut, Buñuel, Fellini, Fassbinder

foi o teatro que primeiro me mostrou o cinema
e eu devorava tudo, esgotava o assunto
procurava por eles nas prateleiras de arte até chegar em Hitchcock
o velhinho que perturbou minha infância
nas noites de Corujão

assistia Hitchcock
para capturar os gestos dos atores
os sorrisos, o jeito de caminharem, de se posicionarem
o silêncio
o diretor a acender um charuto
visto de uma janela
citado por Chris Marker em um de seus filmes, Sans Soleil:
uma mulher admirando um quadro,
o tempo espiralar,
um corpo que cai


lia tudo que a diretora mencionava
e não me admirava em ter na estante de casa
Goethe, Dante, Dostoiévski
sem ainda ter lido
foi o teatro também que me fez apreciar a construção das personagens da literatura
a perceber e anotar suas características
bem ali, na estante de casa,
estavam os livros
mesmo que improvisadamente
e comidos por traças

sem falar no canto,
sem falar na pintura

em 1997,
talvez quisesse ser atriz, diretora, compositora, além de escritora
talvez por isso
por todas as possibilidades
e pela impossibilidade de tudo abraçar e compreender
tenha me tornado poeta

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Glaura Cardoso Vale

sexta-feira, 2 de março de 2012

Wanessa Queiroz

ano bonito e cheio de descobertas; creio que a maior dentre elas foi de ser vista como um pequeno ‘’gênio’’ pela minha vizinha – que era professora. uma professora muito dedicada e amiga, que não podia ter filhos e por isso tinha um amor incondicional por todas as crianças do bairro, inclusive seria de bom tom falar que ela foi a primeira professora de todas elas. certo dia ela perguntou para minha mãe se podia começar a me ensinar o alfabeto. ela sabia (de alguma forma extremamente bizarra, pois devia ficar me observando quando eu saía – e eu nunca saía) que eu tinha potencial para aprender e que eu tinha uma curiosidade incomum por ficar folheando certos livros e jornais da época, enfim, por letras. eu tinha apenas 4 anos e tive o consentimento dos meus pais para ter aulinhas de alfabetização todas as manhãs durante uma hora com a professora maria, que pouco tempo depois entrou pra família e é conhecida até hoje como tia maria. enfim, tive avanços assustadores, consigo lembrar de pouquíssimas coisas agora, mas nunca esqueço de um momento em especial na qual ela me mostrava um livro com letras grandes e sem nenhuma figura e dizia pra eu ler o que estava escrito numa determinada página, e que eu teria que escolher a página e o texto a ser lido. o livro era enorme e todo em preto e branco, parecia muito desinteressante à primeira vista, mas consegui encontrar um textinho mediano e lembro até hoje da primeira palavra que vinha no título com letras maiúsculas e das risadas em conjunto que vieram depois: MARIA; essa mulher que durante quase seis meses me fazia uma criança feliz, só por me mostrar o que os outros não eram capaz de ver em mim. eu, uma criança que não tinha amigos, apesar de viver rodeada de crianças. uma criança que saía com um caderninho amarelo com bolinhas pretas na capa em direção à casa ao lado pra aprender a ler e a escrever como se fosse participar de uma competição de quem come mais jujubas em menos tempo. uma criança que no ano seguinte fez um teste pra provar que a mãe não estava mentindo, mas ela tem só 5 anos, dona Cecília. entrei e estou na escola até hoje tendo que ouvir mas você era muito nova sempre que digo ter terminado o ensino médio com 15 anos.  um exercício de paciência que cultivo, mas logo logo responderei apenas com: eu devia era mandar todos vocês pra casa da tia maria.

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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Daniel Lühmann

mil novecentos e noventa e sete foi quando completei a primeira década, o que significa que em oito de julho daquele ano eu trazia nas costas a leveza de três mil seiscentos e cinquenta dias de existência acumulada, mais os dois vinte-e-noves de fevereiro que tinham me percorrido até então.

pelo que me lembro com a ajuda de algumas matemáticas feitas nos dedos, estava em fase de adaptação à nova cidade, a segunda das sete idas e voltas que contabilizo até aqui. foi a época em que comecei a usar calças jeans pra ir à escola, com a barra desfiada que eu achava o cúmulo da transgressão e denunciava a pederastia vindoura. estava na quarta série, era o último ano daquele lado do colégio, o destino depois seria junto dos que pareciam grandes e inatingíveis.

morávamos, então, numa casa da cor mais peculiar que tinha visto na vida, mistura de bordô, ameixa, berinjela, toda sorte de roxos. ficava bem no alto de um morro muito íngreme, que subíamos de costas eu e meu irmão, numa tentativa de aliviar o peso psicológico de lutar contra a gravidade enquanto voltávamos da natação, que ficava justamente no pé da rua.

o proprietário dessa casa tinha também uma chácara na propriedade vizinha, à qual tínhamos acesso livre. lá vezenquando aconteciam churrascos, nadávamos pelados, comíamos manga no pé, jogávamos um monte de futebol, batíamos punheta, íamos e voltávamos mergulhando sem sair pra respirar, ficávamos queimados demais de sol. sempre passavam gambás correndo pelos muros e os relâmpagos que se rabiscavam naquele céu eram inigualáveis.

o vizinho de trás tinha um mamoeiro que quase caía dentro de casa. ele era mal encarado. eu morria de medo de buscar a bola quando caía na casa dele, porque uma vez andei sobre o piso que ainda secava e ficou desnivelado pra sempre.

tinha também uma minipapelaria na mesma quadra, que vendia doces os mais vagabundos: dip'n'lik, moranguete, uns açúcares saborizados dentro de embalagens de plástico em forma de fruta. no caminho da escola tinha outra papelaria, mais guarnecida. eu era assíduo nas duas e, entre uma e outra, tinha uma loja que alugava decoração pra festas infantis e tinha um mickey deformado pintado na fachada, exemplo elevado da mais pura antipropaganda.
 
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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Suzana


Em 1997 eu tinha 14 anos e sabia que a ordem natural da vida era: nascer-viver-morrer. Porém, quando a mãe da Marina morreu do coração, o tio da Roberta em um acidente de carro e a filha de um amigo do meu pai, aos 14 anos, tive certeza que o mundo estava fora dos eixos.
Naquele ano, um pouco antes das férias, cortei o cabelo curtíssimo, como o da Amelie Poulain, mas sem a franja. Naquelas férias, meu pai pediu um táxi, solicitou que fosse levado à rodoviária e, lá, pediu um bilhete para o primeiro ônibus que saísse. Foi parar em Tailândia, no Pará, mas isso só fiquei sabendo muito tempo depois. Foram as últimas férias da família toda junta, mas isso, também, eu só saberia muito depois. 
Naquele ano me apaixonei pelo menino-mais-bonito-do-colégio, participei de um teatrinho cujo tema era prevenção às drogas, fiz uma festa de aniversário em que fui feliz, cantava “Depois do prazer” em tom choroso, para debochar e, como todos os meus amigos, dizia odiar Claudinho e Bochecha, mas é provável que um dia tenha cantado aquilo, porque grudava na cabeça.
Eu queria ser jornalista, eu estudava piano em um conservatório em que as gurias me desprezavam, eu fazia caminhada sozinha, eu tirei o aparelho dos dentes, eu ganhei um livro de Camus, no Natal, ponto muito importante e que definiu muito do que veio depois.
Fizemos uma festinha de formatura de oitava série cujo convidado de honra era o professor de matemática, que eu deixava falando sozinho na sala, levantava e ia embora, quando a aula era no último horário. Ele gritava para eu voltar, lá de dentro, dizendo: Vou tirar 5 pontos! Dez pontos! Não sei se ele aumentava infinitamente a nota que me tiraria, mas a verdade é que ele não tirava nada. Ele possuía uma aura de fracasso que era muito anterior ao nosso desrespeito e, de certa forma, aos 14 anos, era o professor/adulto com quem mais poderíamos nos identificar. Eu olhava para trás, no fim do corredor, e dava tchauzinho. Quando ele se matou, senti remorso por isso. 
O ano acabou, a festa acabou e, no final, estava ao lado do aparelho de som ouvindo Nenhum de Nós e tomando um vinho de garrafão: Depois da última noite de festa, chorando e esperando, amanhecer, amanhecer, as coisas aconteciam com alguma explicação, com alguma ex-pli-ca-ção.
Explicação não tinha e eu fui em uma sessão espírita em que, segundo meu tio, as pessoas era mesmo possuídas. Assistindo ao transe, tive uma vontade tremenda de rir, e pensava na música do Cazuza, já que o tema daquela noite era a piedade. Acho que em alguma hora não controlei direito o riso, porque um homem me olhou com uma cara muito feia. Murchei.
Quem eu era? Não sei. Eu queria uma vida grande, cheia de emoções, sempre ensolarada. Coisas que, no mundo adulto das pessoas da minha casa, não tinha.
Um milhão de recortes mais poderia fazer de 1997, mas hoje estou triste e fico por aqui.